quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A carta

“Caro Pai Natal,

Hoje, apetece-me escrever-te.
Não te sei dizer porquê.
Olha, hoje deu-me para aqui, o que é que se há-de fazer?...
Também, podia ser pior. BEM pior…
E, mal por mal, olha, antes assim.

Como eu estava a dizer, hoje estou com vontade de te escrever uma carta.
Não que eu seja uma criança - antes pelo contrário.
Até já sou bem crescidinha.
E, verdade seja dita, nem sequer sei mesmo se alguma vez acreditei em ti…
Estás a ver, enquanto crescia, na minha casa sempre se falou mais no Menino Jesus – ainda me lembro de, na noite de Natal, ir à Missa do Galo e beijar a imagem do Menino Jesus.
E sei que há muito boa gente que considera que tu não passas duma criação duma certa marca de refrigerantes, com o teu fato vermelho.
Ainda por cima, nem sequer é Natal.
Mas como já lá diz a canção[1], Natal é quando um homem quiser.

E como já aqui tive o cuidado de frisar, nem sequer te sei dizer o “porquê” desta missiva.
Quer dizer, saber, até sei.
Então, é assim:
Quando te escrevem, é sempre para pedir alguma coisa, seja para si próprio, seja para todos.
Por falar nisso, não achas engraçado, irónico até, que seja sempre na mesma altura, ano após ano, que meio mundo se pareça lembrar do outro meio mundo?
É uma grande… coincidência, não achas?
Mas é como te digo: só ouves e lês pedidos. Todos parecem querer alguma coisa. Desde os mais egoístas até aos mais altruístas.
E penso…
… E tu?
A ti, nunca ninguém parece oferecer nada.
Não, pois não?
Estou enganada?
Não estou, não é assim?
Pois, bem me parecia…

Mas agora, neste mesmo preciso momento, as coisas vão ser diferentes.
Pois eu não estou aqui para te pedir o que quer que seja.
Não, muito antes pelo contrário.
Estou aqui para te oferecer.
Sim, estou a falar a sério.
Também, vamos lá a ser sinceros, já não era sem tempo, não é verdade?
Afinal, se tu estás sempre a dar, agora chegou a tua vez de receber.
 E de receber o quê, perguntas.
E eu digo: descanso.
Tu mereces.
                       
                                                                                                          Atentamente
                                                                                                                 Eu”

Obs.: Conto com o qual concorri ao concurso “Um conto de Natal”, organizado pela Biblioteca Municipal do Sardoal





[1] “Quando um homem quiser”, letra de Ary dos Santos e música de Fernando Tordo, interpretada por Paulo de Carvalho 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A criada lá de cima

A criada lá de cima
É feita de papelão
Quando vai fazer a cama
Diz assim para o patrão:
“Sete e sete são catorze
Com mais sete são vinte e um
Tenho sete namorados
E não gosto de nenhum.”

No meio de tudo o que estava a acontecer, esta antiga rima infantil teimava em aparecer na sua cabeça, a rasgar-lhe os véus finos e quase transparentes, tecidos da forma mais complexa, da sua memória.
Tinha sido ela a descobrir o corpo.
Naquela manhã, havia música muito alta – aos berros, como se costuma dizer - a vir do andar de cima. Não podia ser a sua vizinha, pois sabia que ela estava de visita à família no sul do país. Então, imaginou que fosse a sua empregada – não conseguiu evitar um sorriso, quando lembrou as palavras no tom de voz, quase esganiçado, da vizinha, quando alguém se atreveu a sussurrar a palavra ‘criada’: “Eu tenho uma empregada e não uma criada. Quem tem criada, são os ricos. E eu não sou rica.”
Ela dirigiu-se ao andar de cima para pedir para baixarem o volume, mas encontrou a porta aberta. Começou a empurra-la para chamar e foi então que a viu, caída no chão da cozinha. Imediata e automaticamente, sem pensar em mais nada, dirigiu-se ao telefone e marcou “112”.

E pronto. Foi o que bastou. A confusão ficou instalada.

sábado, 18 de julho de 2015

Carta ao Amor

Meu caro Amor,

Desde já apresento as minhas maiores desculpas pelo meu atrevimento em me estar a dirigir a si deste modo, especialmente quando não o conheço. Nunca lhe fui apresentada.
E é mesmo esse o meu problema: não o conhecer.
Em 40 anos de vida, continuo sem o conhecer. Nunca tive esse prazer.
Conheço sim, uma sua parente: a Paixão. Essa, conheço eu até muito bem, pois é raro um dia em que eu não me apaixone. Seja lá pelo que for.
Agora, amar... Mas amar mesmo… Sentir o tal fogo que arde sem se ver…
Não.
E eu sinto a sua falta. Parece que falta uma parte de mim. E essa parte anda para aí perdida, à espera que eu a encontre. Só que eu não sei aonde procurar.
E sinto algo parecido com… saudades, será?..., o que torna toda esta situação ainda mais absurda, pois se eu não o conheço, como posso eu sentir saudades de algo que desconheço?...
Pois.
Não interessa.
Já me estou a desviar do verdadeiro assunto que aqui me trás.
Então, eu venho por este meio solicitar, encarecidamente, que entre na minha vida, pois eu gostava muito de o conhecer.
Ou então, que me indique o que posso eu fazer, para que possa vir a ter o sublime prazer de lhe ser apresentada pessoalmente.
Fico pois, na expectativa das prezadas notícias a respeito.

Atentamente



quarta-feira, 15 de abril de 2015

Lado a lado

Esta carta, missiva, sei lá mais o quê, é para ti e só para ti.
Tu sabes bem de quem falo e escrevo, tu sabes quem és.

É como aquela canção: For your eyes only[1].
Apenas para os teus olhos.

Nunca te vi. Apenas te ouvi.
Uma vez, estava à espera já nem sei de quem ou o quê, quando ouvi um riso e tudo à minha volta parou.
Um riso claro feito do cheiro da terra molhada depois da chuva, de chocolate, de mel e limão, de pores e nasceres do sol, de brisas frescas no Verão e mornas no Inverno, de noites estreladas e dias límpidos, de manhãs brilhantes e tardes ensolaradas, de água fresca de nascentes, de alegria e ternura, de raiva e dor.
Um riso feito música.
O teu riso.
Feito de ti.

Esse riso ficou comigo, dentro de mim, entranhado em mim.
Estou sempre à procura desse riso, continuamente, onde quer que vá.
Mas em vão.
Nunca mais o encontrei.
Nunca mais te encontrei.

Para colmatar essa ausência, imagino-te.
Dentro de mim, bem cá no fundo, nos cantos mais recônditos da minha alma, vejo-te.
Vejo-nos.
Lado a lado.
A caminhar de mão dada.
Tu perguntas-me para onde vamos.
Mas eu não respondo: apenas encolho os ombros, olho para ti e pergunto: “Isso interessa?...”
Tu olhas para mim, sorris e também não respondes.
Apenas continuamos.
A caminhar. Lado a lado.






[1] Canção interpretada por Sheena Easton e que faz parte da banda sonora do filme de 1981 com o mesmo nome – o 12.º filme da série James Bond. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Cabra-cega

E
ra óbvio!
De tal maneira era óbvio, que Guiomar se admirava por ainda mais ninguém o ter notado. E se o tinham notado, ainda ninguém o tinha dito.
Mas era tão óbvio… Saltava à vista!

Que Vasco estava perdido de amores por Rita, não era segredo: todos o sabiam e sabiam-no bem.
Agora, que Camila, uma das melhores amigas de Rita, também estivesse interessada em Vasco, parecia que só ela, Guiomar, conseguia ver.
Guiomar até chegou a falar disso a Sílvia, uma amiga comum.
Ouve lá, é impressão minha ou a Camila gosta do Vasco?
O quê?!... Mas tu estás doida?... A Camila gostar do Vasco?... Nem pensar!... Mas também, onde é que raio fostes buscar essa ideia?
A lado nenhum. Devo estar enganada.
E a coisa ficou por ali.
Guiomar não falou mais no assunto.

Não falou, é verdade que não falou, mas pensou.
Também é verdade que não o queria, mas tinha mesmo que o fazer.
A isso se via obrigada.
É que era tão óbvio…
Guiomar questionava-se de como era possível mais ninguém se aperceber, mais ninguém ver.
É que saltava mesmo à vista.
Mas parecia que mais ninguém via, ou melhor, queria ver.

E Guiomar bem via a dor, com alguma culpa à mistura, espelhada no olhar de Camila, sempre que Vasco se aproximava de Rita.
Sim, culpa.
Porque Guiomar adivinhava que Camila, para além de gostar de Vasco, também se sentia muito culpada por isso mesmo: afinal, Rita era a sua melhor amiga.

Quer dizer, Camila realmente sentia culpa, mas não era uma culpa, por assim dizer, culpada.
Não era intencional.
Camila não queria gostar de Vasco… mas gostava.
E mais ninguém sabia.
Nem nunca poderiam.
Porque Camila não sabia o que ia acontecer, mas de uma coisa tinha a certeza: Vasco gostava de Rita.
E isso era tudo o que interessava.



Nota: Qualquer semelhança com a coincidência é pura realidade.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Poema estendido

(este trabalho foi desenvolvido no âmbito do convite, endereçado por Ana Cristina Oliveira via Facebook, para integrar a CORRENTE POÉTICA 5.º DIA)


Desenrolo as palavras que teimam em sair de dentro de mim em catadupa, qual chuva torrencial e estendo-as à minha frente.

São imensas. Sentidas nas profundezas na minha alma. Perdidas e achadas nos recantos mais escuros de mim.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Qualquer coisa


Sozinha,
Sentada em frente ao computador.
A luz brilhante do monitor,
Alumia a sala escura.
O silêncio em redor,
Grita bem alto
 De forma surda.
Quero escrever,
Mas não sei o quê
Nem como.
Respiro fundo e
Os meus dedos movem-se, titubeantes, sobre o teclado.
E letras soltas bailam à frente dos meus olhos.
Letras que formam palavras,
Palavras que se agrupam em… qualquer coisa.
Qualquer coisa que brilha
No monitor que dantes estava vazio.