domingo, 14 de julho de 2013

Terra queimada



Marília sentia-se cansada, muito cansada.
E triste. Quase ofendida. Na verdade, quase que ultrajada.

Já por várias vezes tinha tentado explicar, das mais variadas maneiras e feitios, que se sentia extremamente cansada, exausta mesma.
E de todas as vezes tinha sentido que não a tinham ouvido. Ou não tinham querido ouvir.

Mas que mais precisava ela fazer para a levarem a sério, para acreditarem?
Morrer?

Às páginas tantas, era mesmo isso.
E mesmo assim…

Se por um lado era bom sentir todo o árduo trabalho reconhecido, por outro, Marília só queria que a deixassem em paz.
Que a ouvissem, de uma vez por todas.

E que a respeitassem – a ela e à sua vontade!
(mais do que vontade, necessidade…)


domingo, 30 de junho de 2013

Sem título

Fui descobrir este texto que escrevi no já distante ano de 1985, tinha eu a provecta idade de 15 anos. Espero que gostem.


“Chego à praia.
Sento-me à beira-mar.
É tarde, o sol está a pôr-se.
Sinto as ondas a banharem-me os pés. Enterro-os na areia.
O mar está calmo, silencioso… Só murmura qualquer coisa…
Qualquer coisa que mais parece uma canção de embalar…
Mas uma canção de embalar… Para quem?...
Ouço com mais atenção e sorri-o. Claro! Como não pensei nisso antes?...
É uma canção de embalar para o Sol!...
Para o Sol…
Está cansado… Vai deitar-se…
O seu poiso?....
O mar!... O mar, que lhe canta uma canção de embalar…
Até as gaivotas, aves ruidosas, estão silenciosas…
Pelo Sol…
Pelo Sol, que está cansado…
Pelo Sol, que se está a pôr…
Ali fico, sentada, a sorrir, a observar aquela prova de amor e carinho…
Fico silenciosa, enfeitiçada por toda aquela magia que rodeia o descanso do Sol…
Lentamente, vai-se afundando no seu poiso…
Lenta, muito lentamente…
- Mana!
Assusto-me! Quebra-se o encanto…
Olho para trás, para ver quem grita.
É o meu irmão, que me chama.
Olho para o Sol e para o mar, mas já nada tem a mesma beleza…
Levanto-me e vou…
Olho uma última vez para o pôr-do-sol e sorri-o.
Já não se vê o Sol. Apenas uns reflexos alaranjados na sua moradia…
Viro-me e lentamente, vou…”

                                                                       Fátima d’Oliveira (1985)




sexta-feira, 31 de maio de 2013

Contigo


Estou aqui, sozinha, no meio de nada e de coisa nenhuma.
Aqui estou, nesta pagina em branco à espera de não sei o quê.
De algo que aconteça, que me faça acontecer.
Estou aqui e não sei bem porquê.
Estou… porque estou.
Porque sou.
Eu.
Estarei a dormir?
Sim, se calhar é isso: estou a dormir.
E a sonhar.
A sonhar com quê, perguntas.
E eu respondo: não é com quê, mas com quem.
Contigo.


terça-feira, 30 de abril de 2013

Sem nome



Desde já apresento as minhas mais humildes desculpas pelo plágio descarado, roubo, imitação, abuso, chamem-lhe o que quiserem, da obra de Wilkie Collins.[1]
Eu prefiro chamar-lhe empréstimo.
Ou “empréstidado”.
Olhem, não sei, não faço a mínima.
Já o disse e volto a dizer: é como vocês quiserem.

O que é que eu estou aqui a fazer?
Pois, também não sei.

(Sim, eu sei: há muitas coisas que eu não sei.)

Mas há uma coisa que eu sei: estou cansada.
Mas cansada mesmo.
Quem me conhece pode achar ridículo (tanto mais, que eu atá estou reformada), mas o que é que querem?
Isto de estar cansada… Cansa!
E muito!



[1]   Romancista inglês do século XIX (1824-1889), que em 1862 publicou o romance “No Name” (Sem nome)

sábado, 30 de março de 2013

FACE..., o tanas!


(Qualquer coincidência com a semelhança, é mera realidade.)





            Vera não o queria, mas era mais forte que ela: estava zangada, mesmo zangada. Furiosa. E triste, muito triste. Também magoada.
            E tinha tomado uma decisão: ia deixar de ser boazinha.
            Ano novo, vida nova. Não era o que diziam?
            E aquele era um ano novo, pelo menos para ela.
            Era o aniversário de Vera e ela tinha decidido que dali para a frente as coisas iam mudar: a Vera compreensiva, boazinha e doce, tinha acabado. À conta disso, já tinha sido magoada e sofrido em silêncio vezes se conta. “Oh, a Vera vai perceber, ela é porreirinha…” Não, isso ia acabar. Se havia coisas que ela realmente percebia, também havia coisas que ela ia deixar de perceber e aceitar.
            Especialmente aquela.
            Aqueles que a conheciam bem sabiam que Vera dava a maior importância aos aniversários. E não era por causa das prendas. Não. Mas como explicar?... O aniversário era pessoal, chegado à pessoa. Um dia especial. E se Vera gostava de se lembrar das pessoas no dia delas, também adorava quando faziam isso com ela. Mas não era mesmo por causa das prendas: era pelas palavras, pelo simples facto de se terem lembrado dela. Vera sentia-se reconfortada. E feliz.
            Por causa dessa talvez mania, Vera tentava sempre saber os dias de aniversário daqueles que mais contavam para ela. Ela também se esquecia pois não era perfeita (longe, muito longe disso), mas, regra geral, Vera lembrava-se.
            E talvez fosse por isso aquela imensa tristeza, aquelas vagas violentas de desilusão que teimavam em atingi-la.
            Daqueles a quem Vera chamava amigos mesmo, tinham sido poucos a lembrarem-se do seu aniversário. E os que o tinham feito, tinha sido através da rede social FACEBOOK. Até aí, tudo bem. E coisa curiosa: tinham sido mais os amigos do FACEBOOK, a maioria dos quais Vera nunca tinha visto, a darem-lhe os parabéns, que os amigos mesmo.
            Mas o que a deixava mesmo fora de si, era a desculpa esfarrapada de que não tinham ido ao FACEBOOK nesse dia e por isso se tinham esquecido.
            Não foi que Vera pedisse explicações. Não. Mas algo foi mais forte que ela, quase uma impulsão. E no dia seguinte ao seu aniversário, não só escreveu uma mensagem a agradecer a quem se tinha lembrado, como também, quem não quer a coisa, a deixar uma mensagem provocatória a quem não se tinha lembrado.
            E de certa maneira, a mensagem mexeu com algumas consciências, pois foi quando tiveram a triste ideia de lhe contarem essa do FACEBOOK.
            Vera nem se deu ao trabalho de responder, mas, de certa maneira, sentiu a sua inteligência insultada: e então, quando ainda não havia FACEBOOK, como era?
            Ela devia ser uma espécie de bicho cada vez mais raro, daqueles mesmo à beira da extinção…
            Não que Vera tivesse alguma coisa contra Mark Zuckerberg, Dustin Moskovitz, Eduardo Saverin, Chris Hughes e a sua invenção. Nada disso. Vera até apreciava muito o FACEBOOK.
            Mas…
            Uma coisa era certa: Vera, para além da tristeza, mágoa e desilusão, também se obrigou a encarar aquela situação como uma lição. De humildade. Pois ao sentir-se reduzida a toda a sua gloriosa insignificância, Vera viu-se obrigada a concluir que ela não importava para quem lhe importava. Pelo menos, não importava tanto.
            Vera já sabia que não era uma pessoa memorável. À custa de muitas lágrimas, já tinha sido forçada a chegar a essa conclusão.
            Tanto, que o seu sonho antigo já estava meio esquecido. Ou melhor, não estava esquecido: apenas muito bem arrumadinho no fundo de uma gaveta poeirenta.
            Vera tinha o sonho antigo de lhe organizarem uma festa-surpresa para o seu aniversário. Mas isso não ia acontecer. Nunca. E ela sabia-o.
           
            Até quando a fúria, a tristeza e a mágoa iam teimar em não deixar Vera, ela não sabia.
            Até mesmo aquela decisão de deixar de ser boazinha, Vera não sabia se a ia conseguir manter no futuro.

            Mas isso não importava.
            O que importava era como Vera se sentia agora.




domingo, 24 de fevereiro de 2013

Ester

(Conto original, apresentado pela 1.ª vez na “Tertúlia de Poesia”, realizada em 23/02/2013, pelas 15h30, nas instalações da ARPIVALE, no Vale de Santarém.)





            Três, elas eram três.
            Justina, Judite e Juliana.
            As preferidas, as mais que tudo.
            Martinha só tinha olhos para aquelas três, mas havia mais – oh, se havia…
            Claro está, todo aquele descarado favorecimento dava azo a uma ciumeira sem fim. Afinal, o que é que aquelas três teriam de tão especial, tão único, que as diferenciavam de todo o resto?
            Mas isso era uma pergunta à qual ninguém podia responder. Só Martinha o sabia e podia dizer. Mas ela fechava-se em copas, por assim dizer.
            Até parecia de propósito.
            Sim, se calhar até era isso: se calhar, Martinha até distinguia aquelas três de propósito, sabendo de antemão o mau ambiente que isso iria causar.
            Mas nem mesmo essa desconfiança, aliada a uma forte probabilidade, aliviou a cada vez mais insistente animosidade para com Justina, Judite e Juliana.
            E a liderar toda essa revolta, estava Ester.
            Ela, mais que ninguém, não gostou da súbita chegada de Justina, Judite e Juliana.
            Ela, mais que ninguém, como que sentiu bem no fundo de si, qual bofetada inesperada, a preferência com que Martinha agraciava aquele trio.
            E ela, mais que ninguém, sentiu-se preterida. E ignorada. Pois até à chegada daquelas três, era ela, Ester, a preferida. A mais que tudo.
            Mas quem é aquele trio armado ao pingarelho, pensava que era?
            Ester sentia-se, acima de tudo, injustiçada. E magoada. Mesmo muito magoada. E confusa, pois então. Teria ela feito ou dito alguma coisa, que pudesse justificar aquela atitude de Martinha?
            Para além de todo este imenso turbilhão de sentimentos que assolava Ester, havia mais uma coisa, só uma coisinha, na verdade uma palavra, que muito a afligia: e a palavra era essa mesma: sentimentos.
            Até então, Ester sempre se tinha sentido imune a essa coisa para ela ainda desconhecida: na verdade, isso incomodava-a valentemente: mas ela podia sentir?!...
            Ester preferia não o fazer. Mas para grande surpresa dela, não é que ela tivesse grande hipótese de escolha. Ester sentia e pronto. Ponto final. Parágrafo.
            Assustada. Ester não tinha quaisquer problemas em admitir que estava assustada. Mais do que isso: Ester estava muito assustada, aterrorizada mesmo.
            Ela já tinha visto, em primeira mão, o que ser capaz de sentir podia fazer: quantas e quantas vezes Martinha não tinha já adormecido, a chorar, abraçada a ela?...
            Era verdade que isso já não acontecia. Não, agora só aquelas três, Justina, Judite e Juliana, pareciam contar. Se bem que Ester nunca       tivesse visto Martinha adormecer abraçada a elas… Não, ao invés disso, eram só risinhos idiotas.
            Bah!... O que era isso, comparado com o que ela, Ester, já tinha partilhado com Martinha? Ou melhor dizendo, compartilhado?
            Só ela e não Justina, Judite e Juliana, tinha visto Martinha no seu melhor e no seu pior; só ela e não Justina, Judite e Juliana, tinha sido cúmplice de Martinha nas horas boas e nas horas más.
            Portanto, bem vistas as coisas, Ester não tinha motivos para ter ciúmes de Justina, Judite e Juliana.     Pois ela, só ela e mais ninguém, podia dizer, não sem indisfarçável orgulho, que Martinha a tinha escolhido para ombro amigo.
            Está bem, a escolha de Martinha tinha mudado; já não era ela, Ester, mas sim aquelas três, Justina, Judite e Juliana.
            Mas isso não interessava.
            Isso podia mudar.
            Através dos seus olhos grandes violeta profundo extremamente pestanudos, encimados por umas sobrancelhas perfeitamente desenhadas numa carinha redonda bonita de plástico, na prateleira onde estava colocada, Ester observava.
            E esperava.







segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Ajuste de contas

(Este conto era para ter primeiramente apresentado na Tertúlia de Poesia subordinada ao tema “O Ser Humano”, que teria lugar no dia 19/01/2013, Sábado, pelas 15h30, nas instalações da ARPIVALE, no Vale de Santarém. Mas devido àquela “birra intempestiva do S. Pedro” (leia-se, forte temporal), a mesma não aconteceu.)


Porque me olhas assim?... Não faças essa cara de espanto… Sim, eu sabia. Há já muito tempo que o sei. Se queres que te diga, acho mesmo que sempre soube…

            Não sei se contigo se passa o mesmo, mas detesto que me tomem por parva. Não suporto, fico possessa. Má, mesmo.
            A matemática nunca foi o meu forte, mas ainda sei somar dois mais dois.
            Ao príncipio, não vou mentir, realmente estranhei. Mas depois… Lembras-te?...
            Tu eras o rapaz mais bonito, o galã lá da escola. As raparigas caiam-te aos pés que nem tordos e tu podias namorar com quem quisesses.
            Também eu estava nesse imenso rol, a quem tu bastavas estalares os dedos, para te seguirem cegamente.
            E tu realmente estalaste os dedos a muitas. Mas não a mim.
            A bem da verdade, isso não me surpreendia. Não era bonita. Nem popular. Nem sequer uma boa aluna: apenas dava para o gasto. Não, eu não era nada por aí além.
            Para ser sincera, apenas uma coisa me distinguia das minhas colegas. Uma coisa que nem sequer era minha: a fortuna imensa do meu pai.
            Não que eu fizesse questão de o demonstrar: não, quem olhasse para mim nunca que nunca iria em tempo algum dizer que ali ia a herdeira de um homem muito, mas muito, rico.
            Acho mesmo que era mesmo por essa minha atitude algo desprendida em relação à situação financeira da minha família, que não granjeei grandes antipatias lá na escola.
            Nem grandes antipatias, nem grandes simpatias. Apenas mais uma, igual a tantas. Nunca fui de suscitar grandes, vamos lá, paixões. “Amem-me ou odeiem-me”… Não, isso nunca foi para mim. Essa não sou eu, percebes?..
Quase sem eu dar conta, começas-te a aproximar-te, mais e mais, do grupo onde eu estava incluída. Até aí, nada de mais. Naquele grupo havia raparigas muito bonitas e, compreensivelmente, pensei que estavas interessado numa delas. Nada que eu não tivesse já visto e revisto… Perante o quadro que eu já adivinhava, limitei-me a encolher os ombros.
Mas, muito para minha grande surpresa, começaste a falar muito comigo. Mais, a demonstrar interesse em mim. E fiquei completamente atrapalhada. Mesmo sem reacção. Decididamente, aquilo era uma situação nova para mim. Mas tu estavas mesmo interessado em mim?, lembro-me de ter pensado.
E fiquei a saber que, tal como eu, eras filho único. Mas, ao contrário de mim, ainda tinhas ambos os pais vivos: a minha mãe tinha morrido tinha eu cinco anos, num acidente de automóvel.
Não obstante a minha total e completa inexperiência, foste persistente. Na verdade, não me largaste até obter o que querias. Que era eu.
Quando finalmente o conseguiste, lembro-me de ter pensado até quando aquilo ia durar. Pois vamos lá a ser sinceros: eu não acreditava em nós os dois, percebes?...
No entanto, mais uma vez fui surpreendida. Por ti. Porque tu não me largavas. Chegavas mesmo a demonstrar ciúmes: eu ria-me e tu ficavas zangado. E quanto mais te zangavas, mais eu me ria. Então, amuavas e fazias beicinho. Mas nunca por muito tempo.
Só me convenci de que podíamos mesmo talvez ser um casal, quando começaste a dizer em como as nossas famílias se deviam conhecer.
Ao princípio, não o vou negar, fiquei assustada. Não só aquela toda situação, tu e eu, que até agora eu mais tinha sentido como meio fantasiosa meio onírica, ia ser verdade, real, palpável, como fiquei com receio das reacções dos nossos pais: o que iriam os teus pais pensar de mim? E o que iria o meu pai pensar de ti, que conseguia mesmo ser, à falta de melhor palavra, mauzinho? Extremamente mauzinho, bera mesmo.
Muito para minha enorme surpresa (e maior alívio), o encontro correu até muito bem. Os teus pais foram para além de simpáticos comigo, fazendo-me sentir muito bem-vinda. Mas a minha maior surpresa foi, confesso, o meu pai. Porque se eu estava à espera de alguma resistência, até mesmo antipatia, isso não aconteceu. Muito até pelo contrário. Ele praticamente desfez-se em atenções. Tanto, que eu cheguei a duvidar seriamente, por um breve instante, se aquele seria mesmo o meu pai: se não seria antes um sósia dele, ou qualquer coisa que o valesse. Mas logo a seguir voltei àquela minha realidade, de onde tinha-me afastado por fragmentos de momento: era mesmo o meu pai, a revelar-se uma muito agradável companhia. Para minha enorme surpresa, que até então nunca o tinha visto àquela luz.
Depois daquele encontro, tornas-te presença assídua na minha casa. Com o que o meu pai ficava extremamente agradado. De tal forma, que eu comecei seriamente a questionar a razão das tuas muitas visitas: seria eu, ou seria o meu pai? Não tenho nenhum pejo em confessar que me senti quase que a afogar num mar revolto de sentimentos que muito me incomodaram: seriam…?... sim, eram… ciúmes!... Já viste que sentimento mais absurdo para se ter do nosso próprio pai?... Se eu ainda fosse uma criancinha… Mas não, já nem essa desculpa me podia assistir.
Quase sem dar por isso, os anos foram passando e terminámos os nossos estudos. E foi no meio dessas celebrações, que me pediste em casamento. Primeiramente fiquei algo estupefacta, aparvalhada mesmo. Porque tinha sido completamente apanhada de surpresa. Por um lado, aquele desfecho já era algo que se adivinhava, mas por outro…
Fosse como fosse.
Ao olhar para ti, de joelho no chão e a ansiedade da espera duma resposta espelhada no teu rosto bonito, a resposta só podia ser uma: sim. E       amei-te. Ou melhor, penso que te amei. Pois já não sei se foi a ti que amei, ou à ideia que tinha de ti. Ou queria ter.
Começas-te a trabalhar com e para o meu pai.
Finalmente, casámos. Ainda me lembro dos preparativos e da frustração imensa do meu pai, pois até parecia que não era eu quem ia casar, tal não era a minha indiferença.
Por mais que uma vez eu tentei demonstrar entusiasmo, mas, para minha infinita tristeza, fui incapaz. Pode parecer estranho, mas eu sentia-me como uma entidade incorpórea, um espectro, a assistir a algo que se estava a passar com outra pessoa, não comigo. E ao mesmo tempo questionava-me por que raio aquela noiva estava assim, tão calma, tão parada, tão… desprendida.
No dia da cerimónia, naquela igreja apinhada de gente, ao caminhar para o altar de braço dado com o meu pai e ao ver-te à minha espera, finalmente tomei consciência da realidade, que me atingiu com uma força de toneladas, quase esmagadora: aquilo tudo, o que estava a acontecer… era mesmo verdade! Tu e eu íamos ser marido e mulher!
E fui assaltada por outros sentimentos: desejo, luxuria… paixão! Se já te amava, só então me apaixonei. Ou permiti apaixonar.
Já casados, não mudaste: continuaste a ser a mesma pessoa.
Ao fim do primeiro ano de casados, começaram as pressões, as indirectas. Verdade seja dita, era inevitável: quer o meu pai, quer os teus pais, perguntavam o mesmo: quando é que lhe dávamos um netinho ou netinha?
Nós bem que tentávamos, mas não havia maneira, forma ou feitio, de “ficarmos grávidos”. Chegámos mesmo ao ponto de questionar tudo e todos. Especialmente tu. O que, até certo ponto, me surpreendeu: nunca te tinha imaginado do tipo paternal. Mas isso só contribuiu para que o meu amor por ti crescesse ainda mais.
Fizemos até análises, mas, mais uma vez, deu tudo num redondo nada: o problema não era teu. Nem meu. Até que o médico nos aconselhou a parar de tentar forçar, pois a ansiedade era pior. A melhor coisa a fazer, era deixar as coisas acontecerem normalmente, ao seu próprio ritmo.
E foi o que fizemos. Retomámos a nossa vida habitual e parámos com as tentativas desenfreadas. Quando tivesse que acontecer, acontecia. Felizmente que os nossos pais compreenderam a situação e pararam com as pressões.
Quer dizer, às vezes ainda escapava uma ou outra indirecta, mas a coisa ficava por ali.
Os anos passaram e nós continuávamos de pedra e cal, como se costuma dizer. Felizes, verdadeiramente felizes. Ou pelo menos, assim eu o queria pensar.
Até que aconteceu.
Estava a arrumar uns papéis teus quando, bem escondido no meio de tanta papelada, dei de caras com um contrato. Estive quase a arrumá-lo sem me dar ao trabalho de olhar para ele, quando algo me parou, chamando a minha atenção: um nome no contrato: o meu nome.
Com a curiosidade aguçada, comecei a ler o contrato.
Não posso dizer que senti o chão a fugir-me dos pés, ou que me senti como se um comboio tivesse passado por cima de mim, porque isso não é verdade.
O choque não tomou conta de mim.
Fiquei até surpreendentemente calma.
Porque aquilo não foi nenhuma descoberta, percebes?... Foi mais uma confirmação. E uma resposta às minhas mais secretas e mudas questões.
Á minha frente estava um contrato legal, reconhecido notarialmente, estabelecido entre ti o meu pai. E nesse contrato era dito que, mediamente o pagamento de uma quantia bastante avultada pelo meu pai, tu namoravas e casavas comigo. Se não nos divorciássemos, ganhavas mais um tanto por ano e de cada vez que fossemos pais, ganhavas outro tanto. No caso de morte do meu pai, esses valores continuariam a ser-te pagos, mas no caso de tua morte, o contrato cessaria.
Percebi então a tua ansia em sermos pais. Mas pais biológicos. Porque eu me lembro de te ter falado em adopção, para ir de encontro à tua vontade de ter filhos e também me lembro da tua recusa perentória: que não me preocupasse mais com isso, que as coisas haveriam de acontecer naturalmente.
Mas nunca aconteceram.
Acho que, no fundo, no fundo, fui eu. Nunca fiz nada, conscientemente falando, para não engravidar. Mas até parecia que o meu corpo já adivinhava o que só então eu tive a certeza e boicotou todas as minhas tentativas para engravidar.
Lembras-te de eu dizer que eu não suporto que me tomem por parva?...
Pois é, ao ver ali, preto no branco, a confirmação das minhas piores e mais intimas suspeitas, fiquei má.
E fiquei ainda pior, por deixares ali aquele contrato, mesmo à mão de semear. Realmente, tu não devias ter a minha inteligência em grande consideração, pois não?
Só te tenho a dizer: obrigado, pela parte que me toca.
Mas fiquei mesmo “pi-ursa” – sabes como é, pior que uma ursa.
Se naquela altura te visse ali, à minha frente, apertava-te bem o pescoço, tal não era a vontade de te esganar.
Mas logo a seguir obriguei-me a respirar fundo.
Calma, calma… Eu tinha que ter calma. Não se diz que a vingança é um prato que se come frio?
Pois eu diria mesmo mais: gelado!
Naquela noite, quando chegas-te a casa, tive o cuidado (e a capacidade, devo acrescentar) de não deixar transparecer o que estava a ebulir no fundo da minha alma.
Nos dias que se seguiram, aconteceu o mesmo.
Queres saber algo irónico?... No fundo, bem lá no fundo, nós estávamos bem um para o outro: nós merecíamo-nos. Mentir, descaradamente, ao outro, era connosco. Mas de que te queixas?... Afinal, aprendi com o melhor. Aprendi contigo.
Só que tu não estavas sozinho neste processo: havia outra parte envolvida. Se tu eras o corrompido, faltava o corruptor: o meu pai.
Mas ele foi mais esperto que nós os dois juntos: antes que eu pudesse dizer ou fazer alguma coisa, ele morreu. Com uma embolia cerebral, enquanto dormia.
Tive pena de ele morrer. Tive pena duas vezes: uma, porque era o meu pai e outra, porque foi antes de o conseguir confrontar.
            Não que eu tivesse uma ideia definida do que lhe ia dizer, mas logo haveria de me lembrar de alguma coisa, com toda a certeza…
Mas ele tinha partido.
Sobravas tu.
Sabes como é, cá se fazem, cá se pagam.
Uma coisa tu não podes negar: eu soube esperar.
Porque esperei. Esperei mesmo muito. Esperei até ambos os teus pais morrerem, vê lá… Porque eu gostava mesmo dos teus pais e acredito que eles também gostavam de mim. Por isso, esperei. Pois não lhes queria dar não um, mas dois desgostos: a tua morte e saberem que fui eu que te matei.
Sim, sim, ouviste bem: a tua morte.
Pois se estás aí, nessa cama de hospital, com tubos a saírem por tudo o que é sítio do teu corpo, fui eu que te pus aí.
Euzinha.
Devagarinho, lentamente… Tu nem te apercebeste do que te estava a acontecer, pois não?
Reconhece: eu soube mesmo fazer as coisas…
Sabes, eu até consigo acreditar em que, em algum ponto do nosso casamento, me tenhas chegado a amar, à tua maneira muito especial.
Mas não como eu te amei a ti, nunca como eu te amei a ti.

Sei que já falei em vingança, mas não. Não creio que foi disso que se tratou.
Eu diria que foi antes um equilibrar dos pratos da balança, percebes?...
Tu mataste o meu amor por ti.
 E eu matei-te a ti.
Assim mesmo.
Tão simples quanto isso.