(Este conto era para ter primeiramente
apresentado na Tertúlia de Poesia subordinada ao tema “O Ser Humano”, que teria
lugar no dia 19/01/2013, Sábado, pelas 15h30, nas instalações da ARPIVALE, no
Vale de Santarém. Mas devido àquela “birra intempestiva do S. Pedro” (leia-se,
forte temporal), a mesma não aconteceu.)
Porque me olhas assim?... Não faças
essa cara de espanto… Sim, eu sabia. Há já muito tempo que o sei. Se queres que
te diga, acho mesmo que sempre soube…
Não
sei se contigo se passa o mesmo, mas detesto que me tomem por parva. Não
suporto, fico possessa. Má, mesmo.
A
matemática nunca foi o meu forte, mas ainda sei somar dois mais dois.
Ao
príncipio, não vou mentir, realmente estranhei. Mas depois… Lembras-te?...
Tu
eras o rapaz mais bonito, o galã lá da escola. As raparigas caiam-te aos pés
que nem tordos e tu podias namorar com quem quisesses.
Também
eu estava nesse imenso rol, a quem tu bastavas estalares os dedos, para te
seguirem cegamente.
E
tu realmente estalaste os dedos a muitas. Mas não a mim.
A
bem da verdade, isso não me surpreendia. Não era bonita. Nem popular. Nem
sequer uma boa aluna: apenas dava para o gasto. Não, eu não era nada por aí além.
Para
ser sincera, apenas uma coisa me distinguia das minhas colegas. Uma coisa que
nem sequer era minha: a fortuna imensa do meu pai.
Não
que eu fizesse questão de o demonstrar: não, quem olhasse para mim nunca que
nunca iria em tempo algum dizer que ali ia a herdeira de um homem muito, mas
muito, rico.
Acho
mesmo que era mesmo por essa minha atitude algo desprendida em relação à
situação financeira da minha família, que não granjeei grandes antipatias lá na
escola.
Nem
grandes antipatias, nem grandes simpatias. Apenas mais uma, igual a tantas.
Nunca fui de suscitar grandes, vamos lá, paixões. “Amem-me ou odeiem-me”… Não,
isso nunca foi para mim. Essa não sou eu, percebes?..
Quase sem eu dar conta, começas-te a
aproximar-te, mais e mais, do grupo onde eu estava incluída. Até aí, nada de
mais. Naquele grupo havia raparigas muito bonitas e, compreensivelmente, pensei
que estavas interessado numa delas. Nada que eu não tivesse já visto e revisto…
Perante o quadro que eu já adivinhava, limitei-me a encolher os ombros.
Mas, muito para minha grande surpresa,
começaste a falar muito comigo. Mais, a demonstrar interesse em mim. E fiquei
completamente atrapalhada. Mesmo sem reacção. Decididamente, aquilo era uma
situação nova para mim. Mas tu estavas mesmo interessado em mim?, lembro-me de
ter pensado.
E fiquei a saber que, tal como eu, eras
filho único. Mas, ao contrário de mim, ainda tinhas ambos os pais vivos: a
minha mãe tinha morrido tinha eu cinco anos, num acidente de automóvel.
Não obstante a minha total e completa
inexperiência, foste persistente. Na verdade, não me largaste até obter o que
querias. Que era eu.
Quando finalmente o conseguiste,
lembro-me de ter pensado até quando aquilo ia durar. Pois vamos lá a ser
sinceros: eu não acreditava em nós os dois, percebes?...
No entanto, mais uma vez fui
surpreendida. Por ti. Porque tu não me largavas. Chegavas mesmo a demonstrar
ciúmes: eu ria-me e tu ficavas zangado. E quanto mais te zangavas, mais eu me
ria. Então, amuavas e fazias beicinho. Mas nunca por muito tempo.
Só me convenci de que podíamos mesmo
talvez ser um casal, quando começaste a dizer em como as nossas famílias se
deviam conhecer.
Ao princípio, não o vou negar, fiquei
assustada. Não só aquela toda situação, tu e eu, que até agora eu mais tinha
sentido como meio fantasiosa meio onírica, ia ser verdade, real, palpável, como
fiquei com receio das reacções dos nossos pais: o que iriam os teus pais pensar
de mim? E o que iria o meu pai pensar de ti, que conseguia mesmo ser, à falta
de melhor palavra, mauzinho? Extremamente mauzinho, bera mesmo.
Muito para minha enorme surpresa (e
maior alívio), o encontro correu até muito bem. Os teus pais foram para além de
simpáticos comigo, fazendo-me sentir muito bem-vinda. Mas a minha maior
surpresa foi, confesso, o meu pai. Porque se eu estava à espera de alguma
resistência, até mesmo antipatia, isso não aconteceu. Muito até pelo contrário.
Ele praticamente desfez-se em atenções. Tanto, que eu cheguei a duvidar
seriamente, por um breve instante, se aquele seria mesmo o meu pai: se não
seria antes um sósia dele, ou qualquer coisa que o valesse. Mas logo a seguir
voltei àquela minha realidade, de onde tinha-me afastado por fragmentos de
momento: era mesmo o meu pai, a revelar-se uma muito agradável companhia. Para
minha enorme surpresa, que até então nunca o tinha visto àquela luz.
Depois daquele encontro, tornas-te
presença assídua na minha casa. Com o que o meu pai ficava extremamente
agradado. De tal forma, que eu comecei seriamente a questionar a razão das tuas
muitas visitas: seria eu, ou seria o meu pai? Não tenho nenhum pejo em
confessar que me senti quase que a afogar num mar revolto de sentimentos que
muito me incomodaram: seriam…?... sim, eram… ciúmes!... Já viste que sentimento
mais absurdo para se ter do nosso próprio pai?... Se eu ainda fosse uma
criancinha… Mas não, já nem essa desculpa me podia assistir.
Quase sem dar por isso, os anos foram
passando e terminámos os nossos estudos. E foi no meio dessas celebrações, que
me pediste em casamento. Primeiramente fiquei algo estupefacta, aparvalhada
mesmo. Porque tinha sido completamente apanhada de surpresa. Por um lado,
aquele desfecho já era algo que se adivinhava, mas por outro…
Fosse como fosse.
Ao olhar para ti, de joelho no chão e a
ansiedade da espera duma resposta espelhada no teu rosto bonito, a resposta só
podia ser uma: sim. E amei-te. Ou
melhor, penso que te amei. Pois já não sei se foi a ti que amei, ou à ideia que
tinha de ti. Ou queria ter.
Começas-te a trabalhar com e para o meu
pai.
Finalmente, casámos. Ainda me lembro
dos preparativos e da frustração imensa do meu pai, pois até parecia que não
era eu quem ia casar, tal não era a minha indiferença.
Por mais que uma vez eu tentei
demonstrar entusiasmo, mas, para minha infinita tristeza, fui incapaz. Pode
parecer estranho, mas eu sentia-me como uma entidade incorpórea, um espectro, a
assistir a algo que se estava a passar com outra pessoa, não comigo. E ao mesmo
tempo questionava-me por que raio aquela noiva estava assim, tão calma, tão parada,
tão… desprendida.
No dia da cerimónia, naquela igreja
apinhada de gente, ao caminhar para o altar de braço dado com o meu pai e ao
ver-te à minha espera, finalmente tomei consciência da realidade, que me
atingiu com uma força de toneladas, quase esmagadora: aquilo tudo, o que estava
a acontecer… era mesmo verdade! Tu e eu íamos ser marido e mulher!
E fui assaltada por outros sentimentos:
desejo, luxuria… paixão! Se já te amava, só então me apaixonei. Ou permiti
apaixonar.
Já casados, não mudaste: continuaste a
ser a mesma pessoa.
Ao fim do primeiro ano de casados,
começaram as pressões, as indirectas. Verdade seja dita, era inevitável: quer o
meu pai, quer os teus pais, perguntavam o mesmo: quando é que lhe dávamos um
netinho ou netinha?
Nós bem que tentávamos, mas não havia
maneira, forma ou feitio, de “ficarmos grávidos”. Chegámos mesmo ao ponto de
questionar tudo e todos. Especialmente tu. O que, até certo ponto, me
surpreendeu: nunca te tinha imaginado do tipo paternal. Mas isso só contribuiu
para que o meu amor por ti crescesse ainda mais.
Fizemos até análises, mas, mais uma
vez, deu tudo num redondo nada: o problema não era teu. Nem meu. Até que o
médico nos aconselhou a parar de tentar forçar, pois a ansiedade era pior. A
melhor coisa a fazer, era deixar as coisas acontecerem normalmente, ao seu
próprio ritmo.
E foi o que fizemos. Retomámos a nossa
vida habitual e parámos com as tentativas desenfreadas. Quando tivesse que
acontecer, acontecia. Felizmente que os nossos pais compreenderam a situação e
pararam com as pressões.
Quer dizer, às vezes ainda escapava uma
ou outra indirecta, mas a coisa ficava por ali.
Os anos passaram e nós continuávamos de
pedra e cal, como se costuma dizer. Felizes, verdadeiramente felizes. Ou pelo
menos, assim eu o queria pensar.
Até que aconteceu.
Estava a arrumar uns papéis teus
quando, bem escondido no meio de tanta papelada, dei de caras com um contrato.
Estive quase a arrumá-lo sem me dar ao trabalho de olhar para ele, quando algo
me parou, chamando a minha atenção: um nome no contrato: o meu nome.
Com a curiosidade aguçada, comecei a
ler o contrato.
Não posso dizer que senti o chão a
fugir-me dos pés, ou que me senti como se um comboio tivesse passado por cima
de mim, porque isso não é verdade.
O choque não tomou conta de mim.
Fiquei até surpreendentemente calma.
Porque aquilo não foi nenhuma
descoberta, percebes?... Foi mais uma confirmação. E uma resposta às minhas
mais secretas e mudas questões.
Á minha frente estava um contrato
legal, reconhecido notarialmente, estabelecido entre ti o meu pai. E nesse
contrato era dito que, mediamente o pagamento de uma quantia bastante avultada
pelo meu pai, tu namoravas e casavas comigo. Se não nos divorciássemos,
ganhavas mais um tanto por ano e de cada vez que fossemos pais, ganhavas outro
tanto. No caso de morte do meu pai, esses valores continuariam a ser-te pagos,
mas no caso de tua morte, o contrato cessaria.
Percebi então a tua ansia em sermos
pais. Mas pais biológicos. Porque eu me lembro de te ter falado em adopção,
para ir de encontro à tua vontade de ter filhos e também me lembro da tua
recusa perentória: que não me preocupasse mais com isso, que as coisas haveriam
de acontecer naturalmente.
Mas nunca aconteceram.
Acho que, no fundo, no fundo, fui eu.
Nunca fiz nada, conscientemente falando, para não engravidar. Mas até parecia
que o meu corpo já adivinhava o que só então eu tive a certeza e boicotou todas
as minhas tentativas para engravidar.
Lembras-te de eu dizer que eu não
suporto que me tomem por parva?...
Pois é, ao ver ali, preto no branco, a
confirmação das minhas piores e mais intimas suspeitas, fiquei má.
E fiquei ainda pior, por deixares ali
aquele contrato, mesmo à mão de semear. Realmente, tu não devias ter a minha
inteligência em grande consideração, pois não?
Só te tenho a dizer: obrigado, pela
parte que me toca.
Mas fiquei mesmo “pi-ursa” – sabes como
é, pior que uma ursa.
Se naquela altura te visse ali, à minha
frente, apertava-te bem o pescoço, tal não era a vontade de te esganar.
Mas logo a seguir obriguei-me a
respirar fundo.
Calma, calma… Eu tinha que ter calma.
Não se diz que a vingança é um prato que se come frio?
Pois eu diria mesmo mais: gelado!
Naquela noite, quando chegas-te a casa,
tive o cuidado (e a capacidade, devo acrescentar) de não deixar transparecer o
que estava a ebulir no fundo da minha alma.
Nos dias que se seguiram, aconteceu o
mesmo.
Queres saber algo irónico?... No fundo,
bem lá no fundo, nós estávamos bem um para o outro: nós merecíamo-nos. Mentir,
descaradamente, ao outro, era connosco. Mas de que te queixas?... Afinal,
aprendi com o melhor. Aprendi contigo.
Só que tu não estavas sozinho neste
processo: havia outra parte envolvida. Se tu eras o corrompido, faltava o
corruptor: o meu pai.
Mas ele foi mais esperto que nós os
dois juntos: antes que eu pudesse dizer ou fazer alguma coisa, ele morreu. Com
uma embolia cerebral, enquanto dormia.
Tive pena de ele morrer. Tive pena duas
vezes: uma, porque era o meu pai e outra, porque foi antes de o conseguir
confrontar.
Não que eu tivesse uma ideia
definida do que lhe ia dizer, mas logo haveria de me lembrar de alguma coisa,
com toda a certeza…
Mas ele tinha partido.
Sobravas tu.
Sabes como é, cá se fazem, cá se pagam.
Uma coisa tu não podes negar: eu soube
esperar.
Porque esperei. Esperei mesmo muito.
Esperei até ambos os teus pais morrerem, vê lá… Porque eu gostava mesmo dos
teus pais e acredito que eles também gostavam de mim. Por isso, esperei. Pois
não lhes queria dar não um, mas dois desgostos: a tua morte e saberem que fui
eu que te matei.
Sim, sim, ouviste bem: a tua morte.
Pois se estás aí, nessa cama de
hospital, com tubos a saírem por tudo o que é sítio do teu corpo, fui eu que te
pus aí.
Euzinha.
Devagarinho, lentamente… Tu nem te
apercebeste do que te estava a acontecer, pois não?
Reconhece: eu soube mesmo fazer as
coisas…
Sabes, eu até consigo acreditar em que,
em algum ponto do nosso casamento, me tenhas chegado a amar, à tua maneira
muito especial.
Mas não como eu te amei a ti, nunca como
eu te amei a ti.
Sei que já falei em vingança, mas não.
Não creio que foi disso que se tratou.
Eu diria que foi antes um equilibrar
dos pratos da balança, percebes?...
Tu mataste o meu amor por ti.
E eu matei-te a ti.
Assim mesmo.
Tão simples quanto isso.