domingo, 25 de março de 2012

Como diz que foi que disse?


Escretável.
Beto tinha apelidado Eunice de “escretável”.
Quando Eunice ouviu aquela não sabia se palavra pela 1.ª vez, quase que se desmanchou a rir. Foi instintivo, pois ela nunca tinha ouvido tal coisa. Aquilo lembrava-a de escroto e isso era algo que ela sabia não ter.
Beto devia estar a brincar com ela, só podia.
Mas não.
Escretável, ele repetiu muito sério.
Mas que raio seria isso, “escretável”?...
Primeiro, Eunice quis consultar o dicionário, não fosse às páginas tantas a palavra até existir mesmo, ela é que não a conhecia. Mas não, nada. Ainda foi ver online, não se fosse dar o caso de ser um vocábulo novo, que ela nunca tivesse ouvido. Mas novamente, nada.
Descartável?, Eunice ainda pensou. Mas logo a seguir afastou a ideia: não, não fazia qualquer sentido.
Quereria ele dizer… “execrável”?... Sim, se calhar, era isso… Por aproximação fonética e seguindo o sentido do que Beto tinha dito a Eunice, essa era a hipótese mais segura: execrável.
Mas também, que ideia: execrável, abominável…
Porque seria que ele lhe tinha dito aquilo?...
Não importava…
Quer-se dizer… Importar, até importava. Eunice tinha ficado triste, e muito, com aquelas palavras. Por mais que ela fingisse não ligar, as palavras de Beto tinham-na magoado. Ainda mais, por Eunice senti-las tremendamente injustas.
Que Beto considera-se Eunice uma pessoa execrável, abominável, era um direito que lhe assistia. Por mais que Eunice não gostasse, tinha que aceitar.
Agora, que a acusasse de coisas que ela sabia não serem verdadeiras…
Isso deixava Eunice muito triste.
É que Beto em sequer tinha tentado falar com ela, para procurar saber da veracidade do que ele pensava saber.
Não, ela tinha partido logo para a acusação.
Eunice nem sequer se deu ao trabalho de refutar as acusações de Beto: para quê?... Ela sabia que aquela era uma batalha já perdida, pois ele acreditava piamente nas suas palavras, nas suas acusações: Eunice lia a determinação nos olhos de Beto.
Uma determinação férrea, cega… tóxica.
“Adeus”, foi tudo o que ocorreu dizer a Eunice.




quinta-feira, 22 de março de 2012


Por favor, chama-me Jú.
Assim como em Júlia. Ou Juliana.
Mas também Judite. E Justina.
Simplesmente, Jú.

Não interessa donde vim. Nem tão pouco para onde vou. Interessa sim, onde estou.

Moro com um casal. Não me peçam nomes, que não são para aqui chamados.
Vivo com eles e para eles.
Sim, sim, não estou a exagerar. Vivo para eles, para a felicidade deles.
Sou o que se pode chamar de escrava.
Mas não escrava para o trabalho, como é mais normal pensar. Nem tão pouco uma escrava sexual. Não, não sou nenhuma das duas. Pelo menos, não exclusivamente.
Sou uma escrava… como dizer?... do e para o prazer.
Porque é essa, digamos assim, a minha ocupação (e já agora, o meu vício): proporcionar prazer, seja lá de que maneira for.
Como é que eu cheguei aqui, a fazer o que faço, tu perguntas.
E eu respondo-te: foram eles que me encontraram. Mas também fui eu que os encontrei.
Foi numa noite escura (já reparas-te em como estas coisas acontecem sempre à noite? Como se a luz do dia fosse indigna de ver tais… Parece mesmo um tremendo cliché… Mas neste caso trata-se da mais pura das verdades.) que nos encontrámos: eu tinha fugido das bebedeiras do meu pai e das cargas de porrada da minha mãe, e estava perdida numa cidade que não era minha e completamente esfomeada…
Eles olharam para mim e acho que ficaram impressionados com a imagem de abandono e solidão que eu lhes, de alguma forma, transmitia.
Convidaram-me para a casa deles, onde haveria uma refeição quente à minha espera, assim como uma boa noite de sono.
Apesar de não me considerar ingénua (afinal, diariamente somos bombardeados com histórias misteriosas de desaparecimentos…), a minha curiosidade e a perspectiva de comida e dormida derrubaram por completo as minhas fracas muralhas de resistência. Docilmente, agarrei a mão que me era estendida.
A casa deles, um apartamento num prédio antigo, era espaçosa e confortável.
Não faltaram ao prometido: foi-me realmente proporcionada uma refeição quente. Não foi nenhum banquete, mas foi mais do que suficiente para saciar a minha fome e aconchegar o meu estômago. Eles eram muito simpáticos: já não eram um casal jovem e não tinham filhos. Se calhar, foi por isso que se apiedaram de mim, não sei…
Depois da refeição e de uma amena cavaqueira, fui conduzida a um quarto: ali, poderia dormir descansada e retemperar as minhas forças.
Não me importo de confessar que não foi sem algum receio que finalmente me deixei vencer pelo cansaço e pelo sono: o que me iria acontecer enquanto dormia? Será que iria acordar ainda naquele quarto?
Não só acordei, como é minha forte convicção que nada, absolutamente nada, me aconteceu durante a noite. Os meus receios eram completamente infundados.

Bom, agora queres saber o que aconteceu depois, não é assim?
Olha, o que queres que te diga?...

Eles foram carinhos e atenciosos quando eu mais precisava e eu fui ficando, ficando, ficando…

Mas não quero que fiques com a ideia errada. Muito menos juízos sumários e arbitrários. A coisa nem sempre foi fácil, nomeadamente ao princípio. Mas curiosamente foi sempre mais difícil para eles, do que para mim: na grande maioria das vezes, para não dizer sempre, fui eu que tive que tomar a iniciativa.
Mas nunca fui uma prisioneira.
Hoje tenho bons amigos, um curso superior e a vida que eu desejei para mim.
Vivo para eles, para a sua felicidade e o seu prazer. E também o meu, não o vou negar.
Eles olharam para mim e hoje sou eu que olho por eles. Mais do que olhar, vejo. E vivo.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Recado para ti, meu amor, meu estupor


Espero que estejas contente. E satisfeito.
Espero, mas espero mesmo, que finalmente sintas orgulho em ti próprio. Do que tu fizeste.
Eu, por outro lado e como decerto compreenderás, não estou absolutamente nada contente. Nem satisfeita. Muito menos, orgulhosa.
Porque foste tu que me mataste. Literalmente.

Queres acreditar que eu já nem me lembro bem de como te conheci?...
Logo por aí, eu deveria ter visto o que realmente significavas para mim. Só isso deveria ter funcionado como um sinal.
Do que eu me lembro bem, são das nossas discussões: nunca estávamos de acordo. Em coisa nenhuma. Era incrível: se tu dizias dia, eu dizia noite, se tu dizias branco, eu dizia preto, e por aí em diante. Até parecia que era de propósito. Mas não era: nós realmente não conseguíamos estar de acordo. Mas eram umas discussões muito calmas, sem gritos nem zangas. Ou assim eu pensava…
Quando começámos a namorar, acho que não houve ninguém que ficasse convencido: não quero apostar para não perder, mas quero cá acreditar que até chegaram a apostar sobre quanto tempo iriamos ficar juntos.
Era-mos tão, mas tão diferentes…
Quando te apresentei aos meus pais, eles ficaram logo completamente rendidos. Tu, quando querias, sabias ser extraordinariamente cativante. Aliás, tu passavas a vida a gabar-te de que ainda estava para nascer uma pessoa a quem tu não soubesses dar a volta…
Já eu, não fui apresentada aos teus pais. Não por não querer, mas antes por não poder. Eras órfão.
Tinhas 3 anos quando perdeste os teus pais num acidente de viação e foste criado por duas tias-avós solteironas. Sem irmãos, sem primos e sem amigos, tiveste uma infância solitária.
Quando me levaste a conhecer as tuas tias-avós, lembro-me de ter sentido um arrepio na espinha quando entrei naquele casarão. O cheiro a bafio era intenso e o pó acumulado, considerável. Quando finalmente conheci a tua família, quis virar costas e fugir. Mas fugir mesmo, a sério. Invadiu-me a sensação de que elas te abafavam e que seria esse o meu destino, se ali ficasse. Só me consegui conter porque sabia que aquela era só uma visita.
Apesar de o nosso namoro ir ficando mais forte e a nossa ligação mais profunda, de dia para dia, as nossas discussões também cresciam proporcionalmente. Não só de regularidade, como também de intensidade.
Até parecia que era esse o pêndulo da nossa existência. O fim para os nossos meios.
Mas verdade seja dita: nunca me bateste. Nem sequer tentaste fazer para isso. Nem nunca gritavas: sequer levantavas a voz. As nossas discussões, embora intensas, eram assim a modos que surdas-mudas…
Portanto, bem vistas as coisas, ninguém no seu mais perfeito juízo, mas mesmo ninguém, podia, de alguma maneira, ficar genuinamente surpreendido com o rumo dos acontecimentos.
Aconteceu e ninguém pode dizer que não estava à espera. Muito menos eu.
Tínhamos acabado de ter uma daquelas nossas discussões (lembraste do motivo?... É que eu, sinceramente, já não…), mas, mesmo assim, decidimos ir ao cinema. Do filme também já não me lembro bem, mas sei que era um policial. E estou em crer que foi esse o motivo de mais uma discussão, que eu agora sei que seria a última.

Mas o que agora realmente importa é que eu estou morta.
E foste tu que me mataste.

domingo, 11 de março de 2012

Um desejo secreto


Subitamente, o olhar distraído de Leonor pousou no calendário pendurado na parede à sua frente.
Ela suspirou. Fundo, muito fundo, do fundo de si, da sua alma.
O dia, aquele dia, estava quase a chegar: faltavam duas semanas.
Leonor sempre tinha gostado daquele dia e sempre tinha alimentado muitas expectativas.
Mas já não.

O seu aniversário.
Era disso que se tratava.
Leonor tinha um desejo antigo, muito secreto, que trazia consigo. Sempre que o seu aniversário se aproximava, Leonor enchia-se de esperanças e expectativas: seria desta? Seria este o ano em que veria o seu desejo realizado?
Mas não.

Uma festa-surpresa.
Era tudo o que Leonor mais queria.
Ano após ano, desilusão após desilusão, Leonor tinha sempre o cuidado de plantar várias pistas, quer entre a família, quer entre os amigos.
Mas as pistas nunca vingavam.
Leonor já questionava se o problema se encontrava onde plantava as pistas, se nela.

Nela, o problema devia estar nela.

Devia ser extremamente inábil a plantar pistas.

Por isso, agora, não faria nada.
O dia chegaria e passaria.
E Leonor ficaria um ano mais velha.
Só e apenas.

terça-feira, 6 de março de 2012

Praticante militante (História num parágrafo)


Ele não tinha nome, ele era… ele. Só e apenas. Vivia sozinho numa casa pequena, longe de todos, mas perto de tudo. Podia não ter muitos amigos, mas tinha muitos conhecidos. E era muito popular, muito requisitado para tudo e mais alguma coisa. Naquele dia, ele abriu os olhos ainda no meio da escuridão: percebeu que se tinha estendido na cama ainda com a roupa da véspera e assim, tal e qual, se tinha deixado adormecer. Devia ter sido uma noitada e peras, uma autêntica festança, mas de nada ele se recordava. Apenas sabia que a sua cabeça latejava e que todos os ruídos, mesmo os mais surdos, lhe soavam como verdadeiros gritos. Lancinantes. Apesar de a sua mete se assemelhar a uma folha em branco, pelo menos em relação à noite passada, uma coisa ele sabia: aquele dia era Domingo. E não tinha que se preocupar em ir trabalhar. Mas tinha que se preocupar com outra coisa: aquele dia não era só Domingo, era também Dia do Senhor. Como tal, tinha um encontro colectivo marcado na igreja: a celebração da Missa. Sim, era verdade: para além de boémio militante, ele era também católico praticante. Assim, todos os Domingos e dias santos, ele tinha um encontro marcado com o Senhor. Quer dizer, todos os dias santos, não é bem assim. Todos os dias santos são todos os dias e ele não era assim tão praticante. Não. O mais correcto seria dizer todos os Domingos e Feriados Religiosos. Assim, sim. É mais correcto. Mas como era ainda muito cedo, ele ainda ficou na cama a preguiçar: não se atreveu a adormecer, pois podia deixar passar a hora… Quando ele começou a sentir a claridade do dia a querer instalar-se no seu quarto, levantou-se e pensou que um valente duche lhe faria bem. Enquanto fazia a barba, reparou nas olheiras carregadas que se faziam notar. Vestiu-se com aprumo e cuidado. Tentou engolir uma espécie de pequeno-almoço. Antes de sair para a rua, teve o cuidado de pôr os seus óculos escuros de uma qualquer marca na moda, a fim de esconder as olheiras fundas. E foi. Chegou à igreja ainda cedo para a Missa: faltava cerca de meia hora. Tanto melhor, pois era assim que ele gostava: tinha tempo para falar com as pessoas e pôr as cusquices em dia. Sim, porque essa ideia de que os homens não apreciavam uma boa cusquice, era inteira, redonda e completamente falsa. Depois da Missa, ele foi para casa. Engoliu qualquer coisa a fazer as vezes de almoço e como não lhe apetecia fazer nadica de nada, não obstante o terem convidado para sair (“Anda com a gente, vai ser giro”, “Não sei…”, “Anda lá”, “Acho que não”, “Vá lá, não sejas desmancha-prazeres”, “Não, não posso. Fica para a semana. Olha, vão vocês”), esparramou-se em frente à televisão e por ali ficou toda a tarde. Viu filmes que já tinha visto e revisto, mas nem isso o fez sair daquela letargia. Para quê? Não valia a pena. Amanhã seria outro dia e teria muito tempo para fazer o que quer que fosse. 

domingo, 4 de março de 2012

07 de Junho de 2009


Hoje vamos fazer as coisas de maneira um pouco diferente…
Ao vasculhar no meio das minhas coisas, deparei-me com um texto, também da minha autoria, um tudo-nada diferente dos meus trabalhos já aqui partilhados: trata-se de um artigo de opinião.


07 de Junho de 2009

São 18h01 de Domingo, 07/06/2009. Dia de eleições para o Parlamento Europeu. E eu escolhi não votar.
É verdade, abstive-me.
Não vou apresentar quaisquer desculpas esfarrapadas para a minha abstenção. Apenas escolhi fazê-lo.
Muitas são as vozes que consideram este meu simples gesto, uma verdadeira traição ao espírito de Abril, às conquistas de Abril.
Permitam-me discordar. Veementemente.
No meu muito pessoal e, quiçá, discutível ponto de vista, considero a abstenção também uma conquista de Abril. Foi a revolução de Abril que me deu a mim esta voz. E eu fi-la soar, gritar bem alto.
Peço-vos, não me critiquem por não querer votar. Antes me perguntem porquê: porque é que eu não quis votar?
A resposta é simples e, perdoem-me a presunção, creio que comum à grande maioria dos portugueses: eu não confio nos políticos que temos. Com certeza que também os há bons e competentes, em TODOS os quadrantes políticos, mas eu vejo e leio sobre tanta porcaria e corrupção, novamente em TODOS os quadrantes políticos, que uma pessoa fica deveras desencorajada…
Eu sei, eu sei: se eu não voto, que moral me assiste para criticar os políticos eleitos?...
E também, se é verdade que cada um só tem o que merece, muito provavelmente nós só temos os políticos que merecemos…
Também me lembrei de uma outra coisa: se não estou enganada, os referendos só são vinculativos com uma aderência às urnas superior a 50%, não é assim? Pois bem, seria assim tão impraticável aplicar o mesmo princípio ao acto eleitoral? Só com uma taxa de abstenção inferior a 50%, o resultado das eleições seria válido. Caso contrário, as eleições teriam que ser repetidas. No final de semana imediatamente a seguir. Os custos que tal importaria seriam suportados, na totalidade, pelos partidos políticos, à proporção da representação parlamentar de cada partido, à data. E também, de cada vez que tivesse que haver uma repetição, isso representaria um corte (sei lá… 10, 20%...) no vencimento dos políticos, como penalização pela não mobilização do povo português.
Assim, matavam-se dois coelhos com uma cajadada só, por assim dizer: obrigavam-se os políticos a trabalhar e a fazerem por merecer o ordenado e também se elevava o interesse da população portuguesa pelo acto eleitoral, calando assim todos aqueles que defendem a obrigatoriedade de votar. Isso sim, um verdadeiro atentado às conquistas de Abril.

Podem considerar tudo isto extremamente utópico, do reino da fantasia…
Talvez… Talvez sim, talvez não…
Como é mesmo aquela frase?... Ah, sim: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Então, peço-vos, deixem-me sonhar…


Fátima d’Oliveira





sexta-feira, 2 de março de 2012

Janelas, varandas e varandins


        Mercês viu-o e algo nele lhe foi vagamente familiar. Mas o quê?...
        Seria a boca desenhada, o nariz pequeno, os cabelos muito curtos castanho escuros, o corpo a lembrar as esculturas das divindades gregas?...
        Ou seriam os olhos, grandes, grandes, do tamanho do mundo dela, para Mercês se perder?...
        Sim, sem sombra de dúvida, eram os olhos.
        E Mercês lembrou-se dela, daquela criança: Leonardo era o seu nome e Mercês conhecera-o na casa de uma colega da escola, Patrícia. Na altura Mercês deveria andar pelos seus 16 anos, enquanto que ele, Leonardo, não teria mais que 6. Conhecera-o porque Leonardo tinha ido visitar a prima, Patrícia, naquela mesma tarde que escolheram para fazer o trabalho de grupo para a disciplina de História. Leonardo tinha os olhos mais bonitos que Mercês já tinha visto – grandes, cinzentos com alguns traços de verde, levemente amendoados, descaídos e de uma doçura para lá de qualquer coisa – e logo ali lhe foi vaticinado que havia de ser um quebra–corações, que com aqueles olhos as meninas lhe iriam cair aos pés como tordos, ele que esperasse para ver. Mercês lembrava-se de ter pensado que se os olhos eram a janela para a alma, então Leonardo devia valer a pena conhecer, pois aquele olhar de seda e veludo deixava adivinhar uma paisagem feita de mistério.
        Foi a primeira vez que Mercês viu Leonardo. E a última.
        Mas aquele olhar ficou-lhe gravado, colado à pele.
        E agora ali estava aquele rapaz, novamente aquele olhar, mais uma vez aquelas janelas abertas…
        Tanto Mercês olhou para ele, que ele lhe retribuiu o olhar.
        “Desculpe, mas nós conhecemo-nos?” ele perguntou a Mercês.
        “Eu é que peço desculpa” Mercês começou “Não era minha pretensão ser indelicada. Apenas me lembrou alguém que eu conheci…”
        “Ah sim?… E pode-se saber o nome do felizardo?”
        Hum… Bajulador…
        “Pode” ela disse, entrando no jogo “Salvador”
        “Salvador?!” ele exclamou “Não pode ser!”
        “Hã?”
        “Mas isto é uma grande coincidência”
        “Não estou a perceber…”
        “É que eu sou ele”
        “Como?…” Mercês disse “Desculpe, mas continuo sem perceber”
        “O Salvador…” ele fez uma pausa “sou eu”
        “Salvador?!” Mercês exclamou, abrindo muito os olhos, fingindo espanto.
        “Sim, Salvador” ele confirmou “E tu?”
        “Eu?”
        “Pois, tu. Como é que te chamas?”
        “Não te lembras?” ela disse, tentando ganhar tempo.
        Ele olhou directamente para a cara dela, semicerrou os olhos e pareceu fingir tentar lembrar-se. Finalmente, abanou a cabeça “Não, desculpa, mas não” e continuou “Quer dizer, a tua cara não me é estranha, mas não me consigo lembrar do nome”
        Um momento de silêncio. Para fazer suspense, ela pensou.
        “Adriana” ela finalmente falou, dizendo o primeiro nome que lhe veio à cabeça.
        “Adriana?…” ele perguntou e, perante a confirmação muda dela, ele continuou baixinho “Adriana, Adriana, Adriana…”. De repente ele parou, olhou para ela e falou “Ouve lá, tu és aquela Adriana que andava sempre com uma flor no cabelo, uma açucena branca, se não estou em erro?”
        Bolas, que ele era bom: tinha ido ao pormenor de identificar uma flor – e atribuir-lhe uma cor, ainda por cima…
        Sem pensar duas vezes, ela confirmou “Eu mesma”
        Sorriram, ela e ele.
        “O que é que fazes por aqui?” ele finalmente disse, rasgando o véu de silêncio que caía.
        “Oh” ela exclamou “Férias”
        “Ah, sim?” ele pareceu interessado “E quando é que te vais embora?”
        “Amanhã”
        “Já?!” das duas, uma: ou ele estava realmente desapontado, ou então era um belíssimo actor.
        “Sim” ela confirmou.
        “Pena…”
        “Porquê?” ela quis saber.
        “Porque podíamos por a conversa em dia” ele explicou “Tu sabes… O que é que tens feito, por onde tens andado e tudo isso…”
        “Ah, e só se falava de mim?” ela fingiu “De ti, nicles batatóides…”
        “Claro que também se podia falar de mim” ele disse “Mas eu estou muito mais interessado na tua vida” ao dizer estas últimas palavras, ele olhou fixamente para ela, para bem dentro dos olhos dela.
        Suportando aquele olhar fixo e ardente, Mercês não pode deixar de sorrir: o rapaz era mesmo sedutor.
        Ainda suportando aquele olhar que lhe queimava a pele, ela ouviu-se dizer “Ainda temos esta noite”
        Ao ouvir estas palavras, o sorriso dele abriu-se.
        “Mas isso é óptimo” e continuou “Podemos jantar juntos”
        E porque não, Mercês pensou.
        “Está bem” ela assentiu.
        “Então está combinado” ele disse.
        “E aonde vamos?” ela quis saber.
        Ele fez um ar misterioso “É uma surpresa” e ainda “Só tens que estar aqui, linda e maravilhosa, às sete da tarde”
        E foi-se embora sorridente, ainda com aquela expressão de mistério total e absoluto.
        Sozinha, olhando o mar que se estendia à sua frente até onde a vista alcançasse, Mercês riu com gosto: pelo menos, já tinha alguma coisa para fazer naquela noite, a sua última noite naquele lugar.
        Caminhou lentamente até à pensão onde estava hospedada, contando as horas, minutos, segundos, já que não tinha mais nada que fazer.
        No seu quarto e depois de um longo e relaxante banho de espuma, envolta numa toalha cor verde–água, a pingar o chão, Mercês tenta escolher o que levar  vestido: um top de laçada com cavas americanas, a fim de mostrar os bonitos ombros, de cor preta, a cor dos seus olhos, umas calças douradas (enfim, uma ocasião para estrear as ditas cujas, que tinham sido compradas uma vez nuns saldos: uma pechincha a que não pode, ou não quis, resistir – se bem que não abundassem, na sua vida, as ocasiões para usar tal peça de vestuário), quase, quase da cor dos seus cabelos curtos e levemente ondulados: louro escuro ou castanho claro, conforme a cabeça, conforme a sentença – ela preferia louro escuro, pois sempre quis ser loura, e foi com grande desgosto que viu o seu cabelo louro louro escurecer com a idade. Umas pulseiras em ambos os pulsos, umas sandálias pretas de verniz com salto alto e uma clutch preta, completavam o conjunto.
        Mercês deu ainda um jeito ao cabelo, com a ajuda de espuma e das pontas dos dedos, espalhou máscara pelas pestanas, colocou um pouco de baton quase transparente e, para finalizar, mergulhou, por assim dizer, numa nuvem de perfume, Cerrutti Image pour femme, por ela vaporizada à sua frente.
        Pronto, agora sim, estava pronta para o que desse e viesse.
        Olhou para o espelho e não se viu: a imagem reflectida não era a Mercês, mas sim a Adriana.
        Com um suspiro, Mercês (ou Adriana) pôs pernas ao caminho, pois já não faltava muito para a hora marcada.
        Quando chegou ao sítio combinado, viu que tinha sido a primeira a chegar: dele, do Salvador (ou como ele se dizia chamar), nem sinal.
        Mau!, foi o seu primeiro pensamento, mas depois de consultar o relógio, viu que ainda não eram sete horas.
        Para passar o pouco tempo que faltava para a hora marcada, sentou-se num banco de frente para o mar e puxou para os olhos os óculos de sol pretos que trazia enfiados na cabeça, à laia de bandelete.
        Enquanto observava o pôr-do-sol, vários pensamentos atravessaram a sua mente: ele não iria aparecer, ia deixá-la ali plantada, ela ia ter que jantar sozinha e ele iria rir-se a bom rir às suas custas.
        Mas mesmo que ele não aparecesse e que ela tivesse que jantar sozinha, qual era o problema?… Nenhum!…
        “Olá”, uma mão no seu ombro.
        Com um salto, Mercês/Adriana voltou-se: era ele.
        “Desculpa se te assustei”
        “Não tem importância” ela disse, com um sorriso.
        Ele estava muito atraente: um fato preto levemente brilhante, calças e casaco e, por baixo deste último, totalmente aberto, uma camisa impecavelmente branca, aberta nos dois primeiros botões. No pulso esquerdo um relógio todo dourado, presumivelmente ouro. Como calçado uns sapatos pretos em pele, de design italiano. Para finalizar, um aroma inconfundível: Roma, pour homme, de Laura Biagiotti: o perfume masculino favorito dela.
        “Estás muito bonita”
        “Obrigado” ela falou, meio envergonhada “Mas o mesmo digo eu: olha bem para ti”
        “Gostas?” ele perguntou, dando uma volta rápida sobre si mesmo.
        “Muito”
        “Ainda bem, pois foi só a pensar em ti”
        Ela corou.
        “Bom, vamos jantar?” ele perguntou.
        “Claro” ela concordou “E aonde vamos?”
        “Surpresa” ele exclamou, com um ar enigmático “Anda comigo” e estendeu-lhe o braço esquerdo.
        Sorrindo, ela tomou o braço que lhe era estendido.
        Caminharam por ruas estreitas e vielas de tal maneira, que Mercês/Adriana duvidava seriamente que conseguisse encontrar o caminho de volta.
        Finalmente, e depois de muitos virar à esquerda e virar à direita, subir e descer pequenas escadarias compostas por degraus antigos e estreitos, finalmente pararam a uma porta com um cartaz onde se podia ler “El Dorado”.
        “É aqui?” ela perguntou, virando-se para ele.
        “É” ele respondeu com ar satisfeito. Depois, virando-se para ela, acrescentou “Não te deixes enganar pelo exterior despojado e simples. É que aqui fazem da melhor açorda de marisco que já provei. Gostas de açorda de marisco, não gostas?”
        “Não sei” ela disse com sinceridade “Nunca provei”
        “O quê?!” ele surpreendeu-se “Nunca provaste?…” e perante a confirmação muda dela, ainda acrescentou “Não sabes o que tens andado a perder… Mas isso já vai acabar”
        “Mas não achas isso muito forte, muito pesado, para jantar?”
        “Isso?…”
        “Uma açorda…”
        “Não digas disparates” ele exclamou “Aliás, nunca ouviste aquela frase que diz, perdoar o mal que faz pelo bem que sabe?”, e abriu a porta para ela entrar primeiro, entrando logo a seguir.
        A decoração do restaurante era muito simples, rústica até e, ao contrário do que o nome poderia sugerir, não se viam dourados.
        Foram para uma mesa algo afastada da porta, coberta por uma toalha de uma brancura imaculada.
        Quando o empregado se aproximou para lhes trazer as entradas, compostas por pão caseiro, pão de milho, presunto, chouriço, aqueles pacotinhos de manteiga, e queijinhos já cortados às fatias, ele, Salvador (seria?…), apressou-se a pedir açorda de marisco e vinho branco da casa para acompanhar – tudo isto sem sequer consultar a ementa. Ele devia ser um comensal habitual daquele sítio…
        “E para a senhora?” o empregado perguntou, depois de tomar nota do pedido dele.
        Perante esta pergunta, ele olhou interrogativamente para ela e perante o seu silêncio, disse “Pode ser o mesmo para a senhora”
        “Muito bem”, e o empregado afastou-se.
        “Então” ele começou, servindo-se de uma fatia de pão de milho “que é que achas, até agora?”
        “Até agora…” ela disse, encolhendo os ombros, olhando em volta, e acenando com a cabeça “É muito agradável”
        Ele sorriu satisfeito “E espera só até provares a comida”
        “Estou ansiosa”
        “Como?” ele olhou para ela desconfiado.
        “Então, se tu dizes que a tal açorda de marisco é assim tão boa, sempre quero ver isso” ela explicou.
        “E vais. Podes acreditar em mim”
        “Está bem” ela riu-se “Eu acredito”
        Depois de um momento de silêncio, ele alegrou-se “E não é tarde nem é cedo, pois aí vem o nosso jantar”
        “Já?” ela admirou-se.
        “Eles aqui são rápidos” foi a explicação dele.
        Depois de um brinde que ele insistiu em fazer, “À nossa”, começaram a comer e justiça seja feita, ela realmente adorou a açorda de marisco: estava divinal.
        “Salvador” ela começou “tu tinhas toda a razão. Isto é delicioso”
        “Eu não te dizia?” ele falou, visivelmente satisfeito.
        Após terem limpo os pratos e depois da sobremesa (doce da casa para ambos), do café e do digestivo, ele perguntou “Queres ir dar uma volta?”
        “Aonde?” ela quis saber.
        “Sei lá, por aí… olha, vamos ver o mar”
        “Pode ser”
        Chamaram o empregado e no fim de uma pequena briga devido ao facto de ele não a querer deixar pagar a sua parte, “Não senhor, não senhor, eu é que convidei, eu é que pago”, pagaram, ou melhor, ele pagou a conta e saíram.
        Estava uma bonita noite, estrelada, com um luar que tudo banhava.
        Já à beira do mar, onde chegaram num instantinho – era espantoso como, invariavelmente, se demorava tanto tempo a chegar a um determinado lugar, no caso, o restaurante e, na volta, levava-se sempre menos de metade do tempo, ou pelo menos assim parecia –, não se via muita gente: apenas alguns casais, um aqui, outro ali, e por aí fora.
        Ficaram lado a lado, a olhar o mar, calados: ela não sabia o que dizer e ele, oh, ela sabia lá porque é que ele estava calado: só Deus podia saber o que estava a passar naquela cabeçinha.
        “Tens frio?” ele perguntou.
        “Eu?”
        “Sim, tu”
        “Porque é que dizes isso?”
        “Porque me pareceu ver-te estremecer”
        Ah, então era por isso.
        “Frio, frio” começou ela “não tenho. Mas é verdade que está a arrefecer um bocadinho”
        “Isso resolve-se já”
        Com estas palavras, ele despiu o casaco e colocou-o por cima dos ombros nus dela.
        “Obrigado” ela agradeceu com um sorriso “Mas, e tu?”
        “Deixa estar” ele disse “Não te preocupes comigo”
        Outra vez o silêncio.
        “Adriana” ele chamou.
        Ela não ouviu.
        “Adriana” ele chamou outra vez.
        Ela, mais uma vez, não ouviu.
        “Adriana” ele chamou novamente, desta vez acompanhado com um leve toque no ombro direito dela.
        Hã? O quê? Quantos?… Adriana?… Mas quem era essa?… Adriana?!… Adriana… Adriana!… Caraças, essa era ela, pois claro, Adriana.
        “Diz”
        “Então” ele riu-se “estavas distraída?”
        “Desculpa lá” ao dizer estas palavras, colocou-lhe a mão direita no braço esquerdo.
        “Não faz mal”
        “É que estava longe, tão longe…”
        “No mundo da lua?” ele perguntou.
        “Se calhar, quem sabe…” ela disse, com um leve encolher de ombros. E a seguir, acrescentou “O que é que me querias dizer?”
        “Eu?…”
        “Sim, tu. Não foi para isso que me chamas-te?”
        “Isso?…”
        “Para me dizer alguma coisa. Ou já te esqueces-te?”
        Ele pareceu ficar envergonhado “Não, não me esqueci”
        “Então?…” ela ficou expectante.
        Após um suspiro fundo, ele recomeçou “Adriana”, e parou.
        “Fala” ela encorajou-o.
        “Adriana” ele disse outra vez e, depois de uma pausa, falou muito depressa “queres casar comigo?”
        Ela ficou muda de espanto: será que ele tinha acabado de dizer o que ela julgava ter ouvido?… Não, não: não podia ser. Eles tinham acabado de se conhecer.
        Mas ele continuou “Não sei se alguma vez chegaste a saber, mas eu sempre tive uma grande paixão por ti, desde aqueles tempos de escola, em que andavas sempre de flor no cabelo…”
        O quê?!?!?!…
        “… sempre uma açucena branca. Eras a Adriana da açucena, lembras-te?…”
        Meu Deus, ela não podia acreditar: a Adriana, aquela Adriana, a sua Adriana realmente existia.
        “… E a verdade é que ao ver-te hoje, aqui, apercebi-me que ainda estou completamente apaixonado por ti…”
        Não, não era verdade: não podia. Ela recusava-se a acreditar: ele só podia estar a brincar com ela, só podia.
        “… Até já comprei um anel de noivado. Gostas?…”
        Mas não, ele realmente estava a falar a sério.
        “… Então, que dizes?”
        “Que digo?…” ela falou, com voz trémula.
        “Sim” ele insistiu “Queres casar comigo?” e estendeu-lhe o anel, um solitário com uma pedra brilhante.
        Ela olhou para ele e para o anel, alternadamente.
        “Então?…”
        Depois de respirar fundo, ela disse “Salvador”
        “Sim?…” ele perguntou, com a esperança estampada no rosto.
        “Salvador” ela recomeçou “Eu não sou quem tu julgas”
        “Hã?…” ele estava confuso.
        “Eu não sou quem tu pensas que sou” e continuou “Eu nunca te tinha visto antes desta tarde, não me chamo Adriana, e nunca pus açucenas no cabelo – aliás, para ser sincera, eu nem morro de amores por açucenas: prefiro túlipas”
        “Como?…”
        “É isso mesmo que ouvistes: eu não sou a Adriana porque quem pensas estar apaixonado”
 Oh, Deus! Aquilo parecia uma cena tirada de um daqueles dramalhões de faca e alguidar com os quais Mercês tanta gozava.
        Ele olhou para ela “Não és?…”, e ela pode sentir o desespero e desalento dentro dele.
        “Não, não sou” e continuou, enquanto lhe devolvia o casaco “Eu sei que isto não tem desculpa, mas a verdade é que nunca foi minha intenção brincar com os teus sentimentos. Espero que um dia me possas perdoar. Adeus”
        Enquanto se afastava dele com passos muito rápidos, quase a correr, tentava desesperadamente pôr os seus pensamentos em ordem: bolas, não era para ser assim: tudo o que ela tinha pretendido, tinha sido um pouco de diversão. Ao invés…
        “Olha”
        Era ele quem chamava.
        Ela voltou-se “Sim?…”
        “Como te chamas?” ele perguntou com um sorriso, e o seu sorriso era triste.
        “Para que é que queres saber?”
        “Só por curiosidade…”
        Ela pensou e por fim disse “Mercês”
        “A sério?”
        “A sério”
        “Está bem…” e desviou o olhar.
        Ela recomeçou a afastar-se.
        “Mercês”
        Era mais uma vez ele que chamava, interrompendo de novo a sua marcha “O que foi?”
        Ele olhava para o mar, agora prateado, e depois olhou para ela, com aqueles olhos, tristes, tristes, olhar de seda e veludo, janelas abertas de par em par “Prazer em te conhecer”