quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Quem brinca com o fogo...


Claudina estava furiosa, positivamente furiosa. Ou negativamente, pois a vontade dela era torcer o pescoço de Floriano, assim como se faz às galinhas.
Já era a terceira vez que ele repetia a gracinha.
Por mais respeito que Claudina tivesse pela actividade de Floriano – e ela tinha, muito mesmo –, aquilo era algo que qualquer noivo que se prezasse nunca que nunca se atreveria a fazer à sua futura esposa.
Deixá-la em pleno altar… Sim, sim, em pleno altar.
Até parecia de propósito… Estavam já todos na igreja e só faltava dizer o “sim”, quando aquela maldita sirene tocava… Era tiro e queda, nunca falhava…
E ele lá ia, todo lampeiro e sem se atrapalhar, pois como ele dizia, uma vez bombeiro, sempre bombeiro…
É claro que ele não tinha problemas alguns em abandonar a cerimónia do casamento, pois então, como é que ele podia?... Não era ele que tinha que ali ficar a pedir desculpa a todos pelo sucedido. Era ela.
E agora iam casar outra vez, ou melhor, tentar casar.
Seria desta?...
Este era o pensamento predominante de todos aqueles que iriam, uma vez mais, à celebração.
Sim, pois no mais íntimo de si, bem lá no fundo, Claudina sabia que as pessoas já não faziam questão de ir ao casamento dela com Floriano para lhes desejar felicidades, não, isso tinha acontecido na primeira vez, quando muito, também na segunda. Não, agora as pessoas iam movidas pela curiosidade: seria desta que eles casavam?... E a sirene, ficaria muda e queda?...
Parva era ela em aceitar, em consentir toda aquela situação – ridícula, pois então… Se fosse outra, Claudina não duvidava, já tinha mandado o noivo às malvas. E aí ela queria ver, como é que o Floriano se arranjava… Sim, porque ela tinha a certeza: ele só fazia o que fazia porque sabia que ela primeiro barafustava, ralhava, mas no fim aceitava.
Até as empregadas da loja de vestidos de noiva já se divertiam, à grande e à francesa, com a situação: pela frente eram todas salamaleques (pudera, aquilo para elas era um maná), mas por trás, Claudina sabia, eram só risadas de troça.
Aquela situação podia facilmente ser evitada: bastava levar sempre o mesmo vestido: afinal, ele nunca tinha servido o seu propósito final: o casamento. Claudina e Floriano nunca tinham casado. Mas não. Ora não se dizia que dava azar o noivo ver o vestido da noiva antes do casamento?... Pois bem, Claudina não ia correr também esse risco.
Em frente ao espelho, na prova final do vestido de noiva – o quarto que ela ia usar para entrar dentro da igreja –, no meio de muitos elogios e bajulações, subitamente Claudina teve uma ideia. E sorriu. Porque era desta que ia casar. Definitivamente.


*


Na véspera do seu casamento, Floriano estava em casa, muito bem instalado a ler o jornal, quando, nas páginas centrais, se deparou com este anúncio:

A TODOS OS QUE POSSAM TER ALGUM
INTERESSE PELA FELICIDADE ALHEIA

Solicita-se da forma mais encarecida que,
no dia de amanhã, não provoquem
qualquer acção passível da intervenção
dos Soldados da Paz, por motivo de
contracção de matrimónio de um
elemento dos já citados

Certos da melhor compreensão, desde já
apresentamos os nossos mais sentidos
agradecimentos

                                               A noiva, a família,
                                               os amigos e todos os
                                               restantes convidados

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Segundas intenções


        Mafalda estava furiosa.
        Pura e simplesmente furiosa. Fula da vida.
        E quanto mais pensava no assunto, mais zangada ficava. E mais calma. Também divertida. Era complicado…

        Guilherme.
        A culpa era dele. Toda dele. Toda e só.

        A coisa tinha começado da maneira mais inocente possível: Guilherme fazia anos, e Mafalda decidiu-lhe dar uma lembrança. Até aí nada de mais, nada de extraordinário, a coisa mais natural do mundo: um amigo presentear o outro na altura do seu aniversário. Pois sim.
        Mafalda e Guilherme não se podiam considerar amigos, sim, era verdade, mas e daí?, pensava ela. Mafalda conhecia-o, Guilherme conhecia-a, durante algum tempo tinham convivido mais de perto e ela tinha ganho simpatia por ele. Nada mais, nada menos. Só isso.
        Por isso, quando Mafalda viu aquilo na loja, pensou imediatamente nele. Foi automático. E como ela sabia quando Guilherme festejava o seu aniversário, decidiu comprar aquela prenda. Era verdade que ainda faltavam alguns meses, mais isso não incomodou Mafalda. Aliás, aquela prática já era costume nela: via as coisas, lembrava-se das pessoas, adquiria-as (as coisas, bem entendido), e  aguardava pela altura própria: era quase compulsivo: dar pelo simples prazer de dar.
        Até aí, tudo bem.
        E chegou o aniversário de Guilherme.
        Sem deixar que ele falasse, logo Mafalda lhe estendeu, algo orgulhosamente, a prenda escolhida: a surpresa manifesta no olhar dele foi por demais evidente: Guilherme não estava mesmo à espera.
        Depois de agradecer, assim a modos que atabalhoadamente, acrescente-se, Guilherme disse algo que mais valia nunca ter dito: “Não sei se me destes isto para ficares bem vista…”.
        Mafalda ficou gelada. E zangada. Magoada, também. Tudo por causa daquelas três palavras: “ficares bem vista”.
        “Ficares bem vista?”, “Ficares bem vista?”…. Bem vista, o tanas!… É que foi mesmo a pensar nisso que Mafalda tinha comprado aquela prenda – fora isso e peixe para o gato.
        Ora bolas, ela pensava que Guilherme a conhecia um bocadinho melhor que isso.
        Ele com certeza que leu nos olhos dela a ferida aberta por aquelas três malfadadas palavras e a seguir ainda tentou pôr água na fervura, ou seja, tentou dar o dito pelo não dito, dar a volta ao prego.
        Mas sem sucesso.
        As palavras tinham sido lançadas e já nada as podia apagar.
        Não obstante a mágoa, Mafalda achou piada às tentativas de Guilherme em fazê-la esquecer o inesquecível: “ficares bem vista”: não que Mafalda fosse um pessoa de guardar rancor, rancorosa, não, nada disso – mas havia coisas que não se podiam esquecer… E Mafalda tinha uma excelente memória…
        Depois de obrigar-se a isso, Mafalda reconheceu que nem todos pensavam como ela, com aquele quase desprezo pelo dinheiro (até parecia que não lhe custava a ganhar) e aquela paixão quase desproporcionada em dar prendas. Talvez fosse difícil a Guilherme entender esse traço da personalidade dela…
        Já Mafalda estava quase pronta a varrer aquela frase da sua mente para debaixo de um qualquer tapete, quando Guilherme fez uma pergunta que ela não gostou: “Quando é que fazes anos?”.
        A ferida que estava quase fechada, recomeçou a sangrar: também não tenha sido a pensar nisso, em receber prendas, que Mafalda tinha presenteado Guilherme. Não tinha?… Se Mafalda pusesse a mão na consciência, de certeza que não era esse o motivo, se bem que muito escondido, que levava Mafalda a presentear os outros?… A resposta saiu curta e inequívoca: não. Quando muito, e aí Mafalda estava disposta a fazer uma concessão, poderia ter algo a ver com o facto de amigos e conhecidos raramente se lembrarem do aniversário dela. Então lembrava-se ela dos aniversários deles… Mas quando Mafalda os presenteava nunca que nunca era à espera de algo em troca. A sério. Ela apenas gostava de dar.
        Podia parecer esquisito, contra–natura até, mas Mafalda era assim: apesar de quase sempre esquecida, não sabia porquê, não fazia mesmo nenhum esforço para isso, lembrava-se sempre dos aniversários de quem conhecia. E fazia sempre questão de, se não comprar uma lembrança, pelo menos ter uma palavra de felicidades. Pois era forte convicção de Mafalda que todos, mesmo todos – até aqueles que diziam não ligar nenhuma a isso –, ficavam deleitados com aquela simples atenção, de alguém se lembrar do dia deles. É que era esse o sentimento de Mafalda: adorava quando alguém se lembrava do aniversário dela: mais do que receber prendas, o que para ela era mais importante era o facto de ser lembrada. Uma simples palavra, era o que bastava.
        E agora Guilherme queria saber quando é que ela fazia anos.
        Mas Mafalda não lhe disse: se ela tinha sido capaz de descobrir o aniversário dele, ele também havia de ser capaz de descobrir o dela. Só era preciso vontade.
        Era pirraça, Mafalda sabia-o, mas a verdade é que ela não fazia a mínima intenção de facilitar a vida a Guilherme: se ele quisesse saber, que pusesse os neurónios a funcionar: era tudo dado e arregaçado, não?… Isso é que era belo: não queria ele mais nada…
        “Tudo bem, eu cá me hei-de arranjar”
        Mafalda não pode deixar de pensar ter notado um leve traço de aborrecimento na voz de Guilherme – mas podia ser só sugestão.
        Bom, a conversa estava muito boa (mas qual conversa, Mafalda muito gostaria de saber), mas ele tinha que ir. Depois de mais uma vez agradeçer a prenda, Guilherme despediu-se.
        Ao observá-lo enquanto ele se afastava, Mafalda não pode evitar um meio sorriso, apesar de ainda magoada: sempre queria ver se Guilherme realmente se ia dar ao trabalho de descobrir o aniversário dela: já agora, estava curiosa.
        Mas para isso, teria que esperar para ver…



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Para sempre


“A igreja estava toda iluminada…”
Ali mesmo, prestes a caminhar para o altar no que se suponha ser o dia mais feliz da sua vida, Maria da Luz não conseguia tirar aquela melodia da cabeça.
Mas Maria da Luz não queria saber. Só lhe interessava agora o que estava prestes a acontecer: o seu casamento com Abel, o seu mais que tudo. O homem que tinha a certeza amar.
Sorrateiramente espreitou para dentro da igreja e viu que todos os convidados já estavam placidamente acomodados nos respectivos lugares, com uns a primarem pela elegância, outros nem por isso.
Viu também a igreja selecta e graciosamente enfeitada com flores, distribuindo pelo ar um airoso perfume.
E foi com um arrepio de ternura que pode observar Abel, no alto do seu fato escuro e a respirar virilidade por todos os poros da sua pele morena, a esperá-la a ela, Maria da Luz, junto ao altar.
Aos primeiros acordes da “Marcha Nupcial”, Maria da Luz entrou na igreja, pelo braço do seu circunspecto, mas de certeza feliz, pai.

Junto ao altar, sentindo-se mais e mais apertado dentro do seu muito garboso fato, Abel não queria acreditar no que lhe estava prestes a acontecer. Ia casar-se. Casar-se. Logo ele, que sempre tinha dito que nunca, jamais, em tempo algum, daria tal passo, assumiria tal compromisso.
Mas ela… Ela merecia. Maria da Luz, a sua Luzinha. Por ela, ele estaria disposto a dar tal passo.
Não obstante a sua vontade em construir uma vida a dois com Maria da Luz, abençoados por Deus Nosso Senhor, Abel sentiu gotas de suor a formarem-se na sua testa, apesar da aragem fresca daquela manhã de Maio.
Estava Abel a preocupar-se com o seu possível cheiro a suor, «Espero que ninguém dê por nada!», quando os primeiros acordes da “Marcha Nupcial” o arrancaram dos seus pensamentos mais íntimos, dos seus medos mais profundos.
E eis que ela, Maria da Luz, entrou. A sua Luzinha!... Estava… linda!... Linda, linda, linda!... Abel apenas conseguia olhar para ela, com as lágrimas teimosas a querer inundar os seus olhos.
Quando o pai de Maria da Luz deu a Abel o braço da filha, ele só conseguiu olhar para ela, hipnotizado: só tinha olhos para  ela, a sua noiva, a sua Luzinha.

“Caros amigos”, o padre começou. Mas não acabou.

Não, o padre não acabou.
Realmente começou, “Caros amigos”, mas não acabou.
Não conseguiu.
Nem iria conseguir.
Caiu redondo no chão, fulminado por um ataque de coração.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

E peixe para o gato


Pena (ê) (Lat. poena), s. f.  Dó; piedade, compaixão; pesar; mágoa; tristeza; sofrimento; condenação; punição; castigo; parte espalmada da bigorna;  (Lat. penna)  pluma; bico de escrever; caneta; escritor; estilo; asa do rodízio dum moinho;  (ant.) (Lat. pinna)  penha, fraguedo; rocha;  pena de água: veio de água, da grossura duma pena de pato.

Dicionários Domingos Barreira, Dicionário da Língua Portuguesa, Fernando J. da Silva, pág. 1184 (Editorial Domingos Barreira, Porto)



        Ana Luísa sentiu-se incomodada por aquilo que tinha acabado de ler. Sem saber bem porquê, algo nela se revoltou contra aquele artigo, crónica, sabia lá o quê. Mas quem é que aquele tipo pensava que era, para estar para ali a pensar, dizer, escrever aquelas baboseiras, pensou Ana Luísa. Bom, também pensou Ana Luísa, estamos num país livre e cada um tem o direito de expressar a sua opinião, goste-se ou não. E quem diz o que quer, ouve o que não quer, já lá diz o povo. Pois. Ela também gostava muito de dizer o que lhe dava na real gana, não o podia negar. E também arcava com as consequências, gostasse que não gostasse.
        Mas quanto mais Ana Luísa olhava para aquela página, mais ela sentia o seu desconforto crescer. Não que ela se sentisse atingida por aquelas palavras escritas. Não. Com toda a certeza, firmeza e todas as mais “ezas” possíveis e imaginárias, que não. Não, não e não. Definitivamente, não.
        Muito provavelmente tinham sido aquelas palavras iniciais que tinham levado Ana Luísa àquele estado de quase euforia: “Sempre tive pena…”. Pena??? Pena???… Mas quem era aquele chico esperto para dizer uma barbaridade daquelas?… Então, cada um era como cada qual e ninguém, mesmo ninguém, tinha nada a ver com isso. O resto, como já lá dizia o outro, eram cantigas. As pessoas faziam escolhas na vida, optavam por certos caminhos e pronto. Elas lá tinham as suas razões. E pronto. Ponto final, parágrafo.
        Então, cada um sabia de si e Deus sabia de todos, ou qualquer coisa que o valesse.
        Agora vinha de lá aquele de não sei das quantas da mula russa debitar a pena dele. Era preciso lata, muita lata. Ana Luísa sabia muito bem onde o dito cujo podia meter a peninha dele. Então não queriam cá ver isto?… Pena… Bah!… Quem tem pena, são os pássaros…
        Mesmo depois de ter lido todo o texto com atenção, nem assim aquela sensação de opressão abandonou Ana Luísa: mesmo depois de verificar que tudo aquilo tinha um destinatário bem definido, com morada completa, código postal e tudo, como manda o figurino, para ser meio caminho andado, Ana Luísa continuava incomodada.
        Não pelo texto, mas por aquela simples palavra, de quatro letras apenas: pena.
        Ana Luísa detestava a palavra, não a suportava, ia mesmo ao ponto de lhe causar comichões: evitava todo o custo fazer uso dela.
Havia quem lhe chamasse maluca, doida e mais, mas Ana Luísa lá sabia. Podia lamentar, desejar que assim não fosse, mas nunca que nunca tinha pena. Pena revelava ignorância, desconhecimento. Quem tem pena, é quem não sabe. Ou não quer saber.
        E o pior cego é aquele que não quer ver.






Este pequena história, conto, sei lá... coisa, também pode ser... Esta coisa, ou coisinha, tanto faz, foi inspirada... não, não... não é essa a palavra... originada, pode ser... causada, também... accionada!... sim, é essa a palavra, accionada, de accionar... portanto... onde é que eu ia?... ah, sim... blá-blá-blá foi accionada (assim, sim), ou algo que o valha, pelo artigo publicado na revista “Máxima” n.º 151, do mês de Abril do ano de 2001, na página 99, na  rubrica   “s.o.s. homem”,   da autoria de  Miguel  Sousa  Tavares, com o título de “Acorrentados”.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sopa bem-me-sabe


Do alto dos seus 6 anos de idade (na verdade, 6 anos, 3 meses e 14 dias), Carlota permitiu-se um sentimento de compaixão para com o irmão mais novo, Bernardo.
Estava sentada à mesa, já tinha almoçado e agora observava o afã da mãe, enquanto tentava que Bernardo, muito bem sentadinho na sua cadeira, comesse a sopa.
“Vá lá, Bernardo” a mãe dizia “abre a boquinha para o avião aterrar. Aqui vai ele” e logo a mãe imitava o barulho de um motor e fazia os mais variados movimentos com a colher, tendo sempre o cuidado de não a entornar.
Mas a boca de Bernardo teimava em ficar fechada.
“Bernardo” dizia a mãe, com infinita paciência “Vá, abre a boquinha. Olha que o aviãozinho quer entrar para descansar”.
Mas nada parecia resultar. Bernardo simplesmente não abria a boca.
“Oh filho” exclamava a mãe “assim não pode ser. Vá, vá lá, abre lá essa boquinha linda para a mamã ver…” Mas não, nem mesmo assim.
Carlota, ao assistir àquela cena toda, compadeceu-se mesmo do irmão. Ele podia ser uma autêntica peste, mas Carlota bem sabia que aquela colher não trazia nada de… bom. Nunca tinha trazido.
Aproveitando uma pausa da mãe, Carlota foi célere: foi à gaveta onde estavam os talheres e tirou de lá uma colher muito especial.
Rapidamente chegou perto do irmão e, com um ar solene, disse-lhe: “Bernardo, estás a ver esta colher? É mágica. Com esta colher podes comer todas as sopas, que todas te vão saber ao que tu quiseres: a batatas fritas, a mousse de chocolate… Ao que tu quiseres, percebes?... Agora, lembra-te: é segredo, o nosso segredo. Não podes dizer nada. Prometes?...”
Bernardo só conseguiu olhar para a irmã, muito sério.
“Chiu” continuou Carlota “A mãe vem aí. Agora, lembra-te do nosso segredo”
Carlota só teve tempo de trocar as colheres e de se ir sentar no seu lugar.
“Pronto, meu querido” a mãe começou “já cá estou. Pronto para o aviãozinho? Cá vai ele… Agora, só tens que abrir essa boquinha linda…”
Carlota ficou na expectativa, à medida que a colher se ia aproximando da boca de Bernardo. Iria ele abrir a boca? Será que ele a tinha percebido?

A boca abriu.
A colher entrou.
A mãe ficou muito feliz. “Meu querido. Muitos parabéns. Esta sopa é muito boa, não é?”
Mas Carlota sabia a verdade.



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Como (não) aconteceu


Etelvina, Vina como gostava de ser chamada, começava a ficar preocupada.
Já não era a primeira vez que aquilo lhe acontecia – longe disso – e a coisa sempre se resolvia por si própria, mas, mesmo assim... aquilo começava a assustá-la.
E seria só com ela, Vina, que aquilo acontecia? Ou também acontecia aos outros, só que ninguém falava disso?
Vina tinha-o conhecido num dia como os outros, numa ocasião qualquer.
Da primeira vez que o viu, Vina mal reparou nele. Quer-se dizer, notou que ele era educado, simpático, gentil, mas foi só.
Mas isso era sempre o que acontecia.
Só depois,  é que Vina começou a vê-lo com olhos de ver: ele era tão educado, tãão simpático, tããão gentil...
Nã, nã, nã: nada disso, Vina já conhecia o caminho que se abria à sua frente, e aquela era uma estrada que ela não queria, não podia, não ia seguir. De maneira nenhuma, pois Vina já sabia aonde a mesma ia parar: lá, àquele sítio que ela conhecia, onde já tinha estado, tinha saído, e onde não queria voltar.
Paixões assolapadas... E platónicas, ainda por cima.
Mas aquilo que mais assustava Vina, era outra coisa: ele era mais novo que ela para aí uns dez anos, mais coisa menos coisa, e ela, que sempre se tinha tido na conta de uma pessoa liberal para quem cada um só tinha que sentir bem consigo próprio independentemente do que os outros diziam,  que sempre pensou que a idade não tinha importância alguma entre os casais desde que eles se sentissem bem, pois bem, ela sempre tinha evitado interessar-se por homens mais novos. Na verdade, por já mais que uma vez Vina tinha usado o subterfúgio da idade para enterrar bem fundo algum interesse por alguém mais novo que ela. Se o homem fosse mais velho, isso  não a inibia, mas agora mais novo... já era outra música.
Mas desta vez era diferente.
Pela primeira vez, Vina deu consigo a não ligar a mínima ao facto de ser mais velha.
E isso assustava-a.
Quando estavam juntos, por esta ou por aquela razão, por mais que uma vez Vina pensou notar algum interesse especial da parte dele, mas logo a seguir obrigava-se a dizer para consigo que ela estava a construir castelos no ar.
Mas por mais que quisesse e tentasse – e ela tentava, a sério que tentava –, Vina não o conseguia tirar da cabeça: mas que parvoíce, mal conhecia o rapaz e ele ainda por cima era mais novo: com certeza que ele tinha outros interesses... Sim, podia até ser, mas que diferença fazia ele ser mais novo?... E ele até podia realmente gostar da companhia dela, não é verdade?... Pois, pois...
Ai Vina, ai Vina...  Acorda, mulher, acorda! Com tanta rapariga nova e bonita por aí, ele vai mesmo interessar-se por ti, está-se mesmo a ver: é a primeira bola a sair do saco. Oh, mulher, acorda! Abre os olhos: histórias da carochinha só nos livros e, e...
É isso mesmo, assim é que se fala: cabeça erguida, que isto vai passar: passa sempre – mas desta vez estava a custar tanto...


II

Hugo engraçou logo com o jeito desembaraçado dela.
Tinha-a conhecido não importa como nem quando, e achou-lhe logo um piadão.
Ela era mais velha, Hugo sabia-o, mas ele não podia precisar exactamente quantos anos. Não podia, ou não queria... Para ele, isso era irrelevante: que importava a idade?...
Hugo só sabia que gostava da companhia daquela mulher: ela era divertida, inteligente, sabia conversar, sabia ouvir.... E era bonita?... Sim, era: não no sentido clássico do termo, mas sim, ela era muito bonita – mais do que ela alguma vez podia imaginar. Podia parecer uma frase batida, mas a verdade é que a beleza dela vinha de dentro: uma incrível força de agarrar a vida.
Hugo já se tinha tentado aproximar dela, sempre que a ocasião se proporcionava e, se por vezes ela parecia corresponder ao interesse dele, por outras parecia que ela fugia: de quê, ele não sabia. Seria dele?... Será que ele, de alguma maneira, a tinha assustado?... Não, não, ele tinha a certeza que não. Ou seria ela?... Se calhar, era isso... Mas seria possível, uma mulher tão inteligente e esclarecida ter tão pouca confiança em si, na sua qualidade de mulher?... Seria?...
Que mulher tão estranha...
Que mulher tão fascinante!
Às vezes, nas situações mais diversas, Hugo dava por ele a pensar nela, a reviver cada momento passado com ela, muito devagarinho, como um filme em câmara lenta, saboreando cada um.
Hugo quase que passou a desejar ardentemente estar sempre com ela, falar com ela: se ela adivinhasse como era divertida, engraçada, ah, se ela apenas soubesse...
Mas não: ela não lhe dava a mínima importância.
Sim, ela era cortês, sim, ela era simpática, mas mais nada: chegava aí, parava.
E se ao princípio Hugo chegou a colocar a hipótese de o problema estar nela, que estava com medo de se interessar por ele, um homem mais novo, agora ele tinha certeza: o problema estava nele.
Ela não estava, muito pura e simplesmente, interessada nele.
Era só isso, nada mais, nada menos.
Qual medo, qual carapuça!...
E também, sinceramente, quem o tinha mandado a ele, Hugo, ficar interessado naquela mulher?...
É claro que ela nunca ia olhar para ele: era tão dolorosamente óbvio: onde é que aquela mulher ia arranjar motivos de interesse num rapazola como ele, um puto?... Não ia!...
Agora só havia uma coisa a fazer: tirá-la da cabeça.
E isso Hugo ia conseguir, custasse o que custasse.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Jota Cê


“A todos um bom Natal, a todos um bom Natal…”
Com o devido respeito pelo Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras, já não posso ouvir esta canção.
Todos os anos é a mesma coisa.
Eu gosto tanto do Natal como qualquer pessoa, mas não acham que isto é um exagero?
Vá lá, sejam sinceros.
Não concordam comigo quando digo que tudo isto é demais? E que o que é demais, enjoa?
Já nem falo da tal febre consumista, que essa só a apanha quem quer apanhar. Ou pode.
Não, não, não… E nem se atrevam a falar-me daqueles que se deixam contagiar, compram tudo e mais alguma coisa com o dinheiro que não tem, e que agora não sabem o que hão-de fazer à vida. “Pobres coitados”… Pobres coitados, uma ova!... A mim, sempre me ensinaram: “Quem não tem dinheiro, não tem vícios.”
Mas eu estou a falar doutra coisa.
Do tão falado e famigerado “Espírito de Natal”. E de quem se tenta aproveitar disso mesmo.
A vocês não vos parece que é sempre, precisamente nesta altura do ano, que metade deste mundo se lembra que a outra metade existe? E vice-versa. Todos se lembram de todos.
E se alguém não embarca neste altruísmo eufórico, chamemos-lhe assim, quase que é olhado de lado. Na verdade, uma pessoa até se sente culpada, acusada, apontada a dedo. Mesmo a contra-gosto, embarca na tal euforia. Para se livrar dos olhares e cochichos.
Mas também, vamos lá a falar a sério.
O que é, no final de contas, o Natal?
É tão-somente e apenas, um aniversário.
Está bem, não é o meu. E pode não ser o vosso. Mas também pode.
Bem vistas as coisas, e com todo o respeito, o Natal é um aniversário. Apenas mais um, no meio de tantos.
Portanto, eu também tenho um Natal.
Na Primavera, é certo, mas Natal. O meu Natal.
Bem que já lá diz o povo: “Natal é quando o homem quiser”.

O quê? Como disse?
Desculpe, não percebi. Pode repetir?

Quem sou eu?
Peço mil perdões pela minha tremenda falta de educação.
Realmente, têm toda a razão. Eu bem que já me devia ter apresentado.

Chamam-me Jota Cê.
Assim como em J.C..
Mas nada de ideias, está bem?...
Sim, porque eu sei muito bem o que já está a passar por essas cabecinhas… Até parece que já estou a ver o fumo a sair das ditas cujas…
Não.
O meu nome é João Carlos.
João Carlos Almeida Martins.
É esse o meu nome. Jota Cê.
J.C.
Prazer em conhecer-vos.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma ideia como outra qualquer


        Por falar em ideias e manias, lembro-me de uma rapariga, a Eva, que tinha uma, no mínimo curiosa: figos. Eva adorava figos. Mas o mais engraçado era que a Eva nunca tinha provado figos, nunca na vida. No entanto, dizia que os adorava.
        Todos os dias, ao passar por aquela figueira, semi–tapada por aquele muro, Eva ficava parada a olhar para a copa frondosa, a adivinhar a forma do fruto, a sentir-lhe o gosto… Quando dava por si, já se babava e lambia por todos os cantos.
        E quando Eva estava com as amigas, punha-se sempre a falar da sua perdição, os figos.
        “Ó pá, vocês nem imaginam” e dizia “aquilo é muito bom”
        “Verdade?” e as amigas nunca tinham provado figos.
        “Verdade” e assentava com a cabeça “Melhor que chocolate”
        Ena, melhor que chocolate? E arregalavam muito os olhos – melhor que chocolate… mas  o que é que podia ser melhor que chocolate?
        “E então” e continuavam “como é que o figo é? É grande, pequeno?”
        “Oh” e os olhos de Eva brilhavam “É grande, deste tamanho” e fazia um grande círculo com os braços.
        “Grande?” e uma das amigas, a Célia, estranhava.
        E Célia já tinha visto fotografias de figos nas TeleCulinárias da mãe e não pareciam assim tão grandes.
        “Tens a certeza?” e Célia insistia “Olha que nas fotografias não parecem muito grandes”
        “Isso é nas fotografias” e Eva desdenhava.
        “Hum, não sei” e Célia não parecia muito convencida.
        “Estás a chamar-me mentirosa?” e Eva zangava-se.
        “Se calhar, estou” e Célia respondia.
        E brigavam. E rebolavam no chão. E bofetadas. E puxões de cabelo.
        E as outras assistiam.
        “Eva Maria”
        “Célia Cristina”
        E as mães chamavam.
        E elas iam.
        E a briga acabava. E a coisa ficava por ali.
        Mas Eva cada vez pensava mais em figos e na sua adoração por eles, apesar de nunca os ter visto mais gordos. Ela sabia lá como eram e como sabiam – no entanto, Eva gostava de figos,  e pronto!
        Vai daí, numa das muitas vezes em que passava pela tal figueira, viu o portão aberto e não pensou duas vezes: correu para o portão. Olhou para a direita, olhou para a esquerda, ninguém à vista.
        Óptimo!
        A figueira estava lá, rainha no seu reino.
        Eva tocou no tronco da figueira e uma coisa esquisita correu-lhe pela espinha abaixo.
        Cruz credo: Eva ficou assustada. Até parecia que a árvore estava viva e queria-lhe falar…
        Olhou para cima: xi, que coisa tão alta.
        E agora?
        Alguma coisa se havia de arranjar.
        Eva viu umas pendurezas pequenas verdes nos ramos. Então aquilo é que eram figos?
        Afinal, a Célia sempre tinha razão – os figos realmente eram pequenos.
        Bom, isso agora não interessava – interessava sim, fazer os figos chegar cá abaixo.
        Mas como? Como?
        Eva olhou à sua volta, e teve uma ideia. Agarrou em várias pedras, e foi um ver se te avias, a atirá-las até cair algum figo. Só que tal não era nada fácil, muito antes pelo contrário: mas mesmo certo não caía nenhum?… Aquilo é que era uma pontaria…
        Bolas, que já não era sem tempo!… Até que enfim: caiu um figo.
        Eva correu a apanhá-lo: peganhento…
        “Hei, menina” um trabalhador da quinta “O que é que está aí a fazer?”
        Eva não respondeu: ficou tão assustada que não disse nada, não foi capaz.
        “Ó menina, estou a falar consigo” continuou o homem “Então não querem lá ver que a cachopa é surda”
        Eva, ao ver o homem aproximar-se, virou-se e pernas para que vos quero – parecia o diabo a fugir da cruz…
        Quando viu que já estava bem longe, parou.
        Depois de recuperar algum do fôlego, elevou a mão direita e abriu-a lentamente, uma flor a abrir. No meio, o figo.
        E agora?
        Eva não fazia a mínima ideia de como comer um figo.
        Mas isso não a atrapalhou: levou-o à boca, e pronto, mordeu-o…
        Hã, o quê?
        Ah, querem saber se a Eva gostou do figo, é isso?
        Mas vocês acreditam que eu me esqueci de lhe perguntar?
        Pois é, não sei.
        Mas olhem, façamos o seguinte: da próxima vez que eu a ver, pergunto-lhe e depois digo, está bem assim? Pode ser?
        Pode?
        Ainda bem.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Rolos de guita e vestidos de chita


Olhavas-te ao espelho e não desgostavas totalmente do que vias: cabelos castanho-escuro presos num fácil rabo-de-cavalo, olhos castanhos e a pele clara salpicada de sardas.
Ainda faltavam alguns dias – para ti pareciam muitos, mas na verdade eram menos – e não se falava de outra coisa: do casamento, do TEU casamento.
Esse era um dia pelo qual esperavas ansiosamente. Não pela tua vontade em unires a tua vida ao Amílcar, o teu noivo, mas porque querias despachar a coisa depressa, por assim dizer. Quanto mais depressa chegasse o dia, mais depressa passava o dia.
Tu sabias que dito assim, até parecia que encaravas o teu casamento de ânimo leve, quase que com leviandade.
E isso não era o que acontecia.
Tu até gostavas do Amílcar, tu sabias que sim.
Mas… - e lá estava, o tão temido “mas”.
Já o conhecias desde criança, pois era teu vizinho. Cresceram e brincaram juntos, colegas e confidentes, companheiros do bom e do mau.
O namoro aconteceu naturalmente, quase sem dares por isso.
E foi num abrir e fechar de olhos – pelo menos, era assim que te sentias – que te vistes de casamento marcado.
A tua família rejubilou com a notícia, assim como a família dele.
Afinal, quer tu, quer ele, já faziam parte da família do outro. O casamento apenas simbolizava o confirmar, o oficializar dessa pertença, dessa união.
Apesar de se tratar do teu casamento, sempre te sentistes deslocada nos preparativos. Não por serem feitos à tua revelia. Nada disso. Mas por mais que tentasses e quisesses, nunca te sentistes integrada, incluída.
Até parecia que era outra pessoa a casar, que não tu.
Na verdade, a tua indiferença (seria essa a palavra?...) chegou a um a ponto tal, que prejudicavas mais que ajudavas. Ou pelos menos, isso era o que sentias. Se bem que prejudicar fosse uma palavra muito forte: tu não prejudicavas, apenas não ajudavas.
Parecia que para o teu próprio casamento, estavas indisponível. Nas tintas. Ou assim fazias crer, a qualquer observador mais distraído.
O Amílcar…
Ele não merecia aquela atitude quase displicente, não. Ele merecia mais. E melhor.
A única coisa que te conseguia apaziguar, de alguma maneira trazer alguma paz de espírito, era o facto de saberes que tinhas tentado falar com ele.
Mas a tudo, a todas as tuas tentativas de lhe tentar explicar o que te ia na alma, de como te sentias, o Amílcar fez questão de fazer ouvidos de mercador.
Isso não passam de nervos pré-casamento, ele disse, Isso passa.
Tu bem que lhe tentaste dizer, mas como é que podias culpá-lo por ele teimar em não te ouvir, quando tu própria não sabias bem, não o sabias pôr em palavras?
Apenas o sabias sentir.
E como é que te sentias?
Nem tu própria sabias… Apenas sabias que o sentias.
Sentias que ias casar com alguém que era muito teu amigo, que te conhecia quase melhor do que tu te conhecias a ti própria, mas que não era… o tal.
Que o casamento era vontade e desejo profundo de Amílcar, disso não tinhas dúvidas.
Ele gostava de ti, tu sabias que sim. Mas tu também gostavas dele. Apenas não o amavas. E ele amava-te.
Mas como dizer-lhe, sem o magoar, que o seu amor não era correspondido?
Porque isso, para ti, não podia mesmo ser: tu não querias nem podias magoar o Amílcar.
Ele não merecia.
Mas tu também assim não podias continuar, com esse vazio, essa coisa qualquer que se confundia com indiferença, essa por vezes quase dor, dentro de ti: a querer invadir e consumir a tua alma.
E duvidavas de ti: se calhar até era assim que te devias sentir. O que tu pensavas não ser amor, se calhar até era.
Ainda em frente ao espelho, olhavas para ti do lado de lá e sentias-te dividida: que fazer? Que dizer? Querias fechar os olhos e esquecer-te. De ti. Do Amílcar.
Quiseste esquecer o mundo. E muito particularmente o casamento. O teu casamento.
Mas isso não podia ser. Não, não podia mesmo ser.
E suspiravas fundo.
“Juliana”
A tua mãe chamava-te.
“O que foi?” tu respondeste.
“Anda cá. O Amílcar está aqui”
Mais uma vez o teu olhar encontrou-se com o teu no fundo do espelho e mais uma vez suspiraste fundo, muito fundo, do fundo de ti.
Olhaste à tua volta e foste. Sabias que aquele era o caminho: apenas não sabias que direcção tomar.




Numa quente tarde


        Isto é uma história de Verão.
        De um qualquer Verão.
        De um qualquer mês quente de Agosto.

        O ar estava quente, abafado, pesado, colava-se à pele.
        Sol de trovoada, uns diziam.
        Mas o céu teimava em manter-se limpo e o Sol, todo–poderoso, reinava sem oposição.
        Em frente ao espelho, Cláudia olhava-se. Admirava-se.
        Era bonita e sabia-o.
        O corpo bem delineado pelo fato de banho aos quadradinhos brancos e pretos, o cabelo pelos ombros castanho-escuro brilhante, o rosto com feições perfeitas de onde sobressaiam dois faróis negros, um tom dourado a cobrir-lhe a pele.
        Sentiu-se vaidosa com toda a vaidade permitida pelos seus 17 anos e tinha toda a razão para isso.
        “Cláudia” uma voz chamou, a mãe “Despacha-te”
        “Vou já” e Cláudia apressou-se a vestir a T-shirt Benetton sobre o fato de banho.
        Os pais e o irmão mais novo já estavam à espera e Cláudia voou pelas escadas abaixo da casa alugada.
        Na praia Cláudia olhou num misto de pena e inveja para as outras raparigas que se passeavam nos seus biquinis e um par de olhos negros suplicantes pousaram-se na figura com barriga de cerveja do pai.
        “Podes tirar o cavalinho da chuva” ele começou “que não compras nenhum biquini. Pelo menos enquanto comeres do comer que eu pago”
        Cláudia suspirou resignada, mas não evitou um pensamento «Bota de elástico».
        Mas porque é que o pai dela não era assim como os outros pais? Porque é que ele era tão, tão... antiquado?
        Com uma cara de amuo ela tirou a T-shirt Benetton e começou a espalhar protector solar pelo corpo, em movimentos vagarosos.
        “Irra” exclamou o pai “Mas mesmo certo isso ainda é preciso?... Se tu já estás queimada, para que é que são essas mariquices todas, sabes-me dizer?”
        Cláudia apenas olhou para o pai, sem dizer uma palavra: lá por ela já estar queimada, isso não queria dizer nada. Ela lia as revistas, ela via televisão, ela sabia: o sol era muito bom, mas também podia ser muito perigoso e como o seguro tinha morrido de velho e a prudência ainda lhe tinha ido ao enterro, Cláudia preferia prevenir para não ter que remediar.
        “Só está bem é a untar-se, só está bem é a untar-se...” ainda disse o pai.
        “Mana” o irmão mais novo, Nuno “Quero ir ao banho. Anda comigo”
        “Oh Nuno” Cláudia parecia aborrecida “Não me apetece”
        “Ó pá” Nuno insistiu “Anda lá. Sabes que não posso ir sozinho”
        “Mas tu mesmo certo não podes passar sem ir uma vez que seja ao maldito banho?” Cláudia estava mesmo aborrecida.
        “Cláudia Isabel” a voz zangada do pai “Vais com o teu irmão, e é já”
        “Está bem, está bem” Cláudia abriu muito os olhos “Não é preciso gritar”
        Nuno correu para a beira-mar, e Cláudia seguiu atrás, devagar.
        Enquanto Nuno aparecia e desaparecia nas ondas que vinham morrer à praia, os olhos de Cláudia saltavam de pessoa em pessoa, farol de ilha em ilha.
        Mas uma ilha a luz focou e por ali ficou: uma ilha alta, máscula, loura.
        «Um borracho» Cláudia pensou.
        Ele estava ali parado a olhar, mas também a ser olhado e, Cláudia apostava, ele sabia-o.
        Até que o olhar dele encontrou-se com o dela.
        Ele sorriu, ela envergonhada corou e apressou-se a afastar o olhar.
        “Olá” o coração de Cláudia deu um pulo: era ele.
        “Olá” ouviu-se Cláudia dizer.
        “Como te chamas?” ele perguntou.
        “Cláudia” o olhar dela continuava fixo no mar “E tu?”
        “Sérgio”
        Cláudia olhou-o fixamente, mas nada disse.
        Teve que ser ele a rasgar o véu de silêncio que caia suavemente “Estás aqui de férias?”
        “Estou. E tu?”
        “Não. Só de fim-de-semana”
        “Sozinho?”
        “Pois claro. Tu não?”
        “Quem dera” Cláudia suspirou “Estou com os meus pais e com o meu irmão”
        “Mais novo ou mais velho?” Sérgio quis saber.
        “Mais novo”
        O olhar de Sérgio perdeu-se no mar e Cláudia pode estudá-lo melhor: o perfil fazia curvas harmoniosas, montanhas que apetecia escalar, os olhos claros, lagos onde apetecia mergulhar, o peito másculo um deserto onde apetecia perder, para se encontrar no oásis da sua boca.
        «Cruzes» Cláudia abanou a cabeça, como que a acordar de um sonho «Que pensamentos»
        Ela estava assustada com aquilo que sentia crescer dentro de si. Ela mal conhecia o rapaz, por amor de Deus!... Devia ser o calor, sim, devia ser isso – já tinha ouvido dizer que o calor, por vezes, dava a volta à cabeça e pelos vistos era verdade.
        “O que é que fazes hoje à noite?”
        Cláudia assustou-se: estava tão envolvida nos seus pensamentos, que quando Sérgio falou foi como se a forçassem a voltar ali – e no entanto, era ali que ela queria estar.
        “O que é que fazes hoje à noite?” ele repetiu.
        “Hoje à noite?” Cláudia parecia um eco, sem saber que mais dizer.
        “Sim, hoje à noite”
        “Não – não sei” Cláudia balbuciou “Porquê?”
        “Oh, estava a pensar se não gostarias de ir dar uma volta comigo, depois do jantar. Isto é” Sérgio apressou-se a dizer “Se puderes”
        Cláudia abriu muito os olhos: ele estava a convidá-la para sair, não estava?
        “Adorava ir” Cláudia disse num sopro “Mas há um problema”
        “Problema?” Sérgio franziu o sobrolho.
        “Sim. O meu irmão”
        “O teu irmão?”
        “Sim. Tenho a certeza de que o meu pai só me vai deixar sair se o meu irmão for também”
         “Ah sim? E quantos anos tem o teu irmão?”
        “11” Cláudia olhou receosa para Sérgio, como que a temer a reacção dele.
        Mas em vez de ficar aborrecido ou outra coisa assim, Sérgio sorriu “11 anos?”
        Cláudia confirmou com a cabeça.
        “Não te preocupes, alguma coisa se há de arranjar. Olha” o sorriso de Sérgio rasgava-lhe o rosto de orelha a orelha “Tenho a solução ideal”
        “Hã?”
        “Ouve, está cá um circo, vi-o há bocado” e continuou “Esta noite, depois do jantar, dizes que vens com o teu irmão ao circo. Ele gosta de circo, não gosta?”
        “Gosta”
        “Pois bem, vais com ele ao circo, que eu depois vou lá ter contigo”
        “Está bem” a voz de Cláudia tremeu de excitação e ficou parada a olhar para Sérgio que se afastava.
        “Mana”
        “Hã? O quê?”
        “Mana” era Nuno “Já fui ao banho. Podemos ir embora”
        “Nuno” Cláudia começou, passado um bocado “Hoje à noite há circo. Gostavas de ir?”
        “Podes crer” os olhos de Nuno iluminaram-se, para logo a seguir se ensombrarem “Mas não posso”
        “Essa agora” Cláudia exclamou “E porque não?”
        “Tu não vais comigo. Tu nunca vais”
        “Vou”
        Nuno olhou para ela, a alegria e a surpresa estampadas no rosto.
        “Vais?”
        “Vou”
        “Mas vais mesmo?”
        “Vou”
        “De certeza?”
        “Absoluta”
        “Sintética?”
        “Analítica”
        E pronto! Não foi preciso mais nada: Nuno desatou a correr para os pais a contar-lhes a novidade.
        Cláudia não conseguiu evitar uma pontinha de culpa: era verdade que nunca saía com o irmão – ele às vezes era tão chato, um empecilho: era irmão mais novo, e estava tudo dito! – e se não fosse este encontro escondido com Sérgio, também não era desta.
        Ela chegou ao pé dos pais e do irmão.
        “Então, menina” começou o pai “já sei que esta noite vais com o teu irmão ao circo”
        “Sim” Cláudia confirmou.
        “Filha” a mãe largou a renda “isso é bom, muito bom”
        “É” disse o pai “parece que finalmente estás a criar algum juízo. O que já não era sem tempo” e voltou a afundar-se nas páginas do jornal desportivo. Mais não disse.
        A mãe também não disse mais nada: voltou a pegar na renda, naquela toalha de renda que Cláudia sempre se lembrava da mãe estar a fazer, promessa para o seu enxoval.
        Cláudia seguiu-lhes o exemplo, e também ficou calada: teve medo de que se falasse, os pais iriam perceber que algo se passava.
        O resto da tarde correu lenta, muito lentamente: até demais, no pensar de Cláudia.
        De minuto a minuto ela olhava para o relógio, como se assim os ponteiros pudessem andar mais depressa.
        “Mas o que é que tu tens?” às tantas o pai perguntou.
        “Eu?” a voz de Cláudia tremeu um pouco.
        “Sim, tu” e o pai continuou “Volta na volta estás a olhar para o relógio”
        “Não é nada” Cláudia apressou-se a dizer.
        Já na casa, Cláudia fugiu para o seu quarto.
        Tinha que ter cuidado, ou ainda estragava tudo.
        Mas a noite tão esperada chegou, e Cláudia apressou-se a vestir-se. Queria estar no seu melhor. O vestido branco realçava-lhe a cor da pele, mas o preto era melhor para sair à noite: diluía-se mais.
        Escolheu o preto: um vestido curto, justo, que lhe moldava o corpo.
        Era melhor levar também um casaco, não fosse o pai dizer alguma coisa.
        Enquanto se penteava e dava os últimos retoques, lembrou-se de repente de uma coisa: o perfume! Tinha que pôr um bocadinho, era imperdoável se o não fizesse.  Como era mesmo aquela frase de Coco Chanel?... Ah, sim, «pôr perfume onde gostaria de ser beijada». Bem, é claro que Cláudia gostava de ser beijada na boca, mas pôr perfume nos lábios?... Só um bocadinho...
        Agora estava pronta.
        “Até que enfim” Nuno tinha a impaciência na voz “Estava a ver que nunca mais”
        “Não estamos atrasados” sossegou-o Cláudia.
        “Só que eu quero sentar-me à frente e se calhar já não há lugares”
        “O Nuno tem razão” a mãe disse “É melhor irem”
        “Vamos, vamos” Nuno quase que empurrava a irmã “Até logo”
        “Até logo” acenou Cláudia “E tu não me empurres” disse para o irmão.
        “Até logo” disse a mãe.
        “Até logo” falou o pai sem levantar os olhos do jornal “E juízinho” ainda gritou.
        Na rua, Cláudia ia com o irmão pela mão: ela em silêncio, ele a falar coisas que se perdiam na noite, coisas sem qualquer importância.
        No circo já estava muita gente, mas ainda havia alguns lugares à frente.
        “Vai-te sentar lá à frente” disse Cláudia para o irmão “que eu fico aqui atrás”
        “Está bem” e Nuno correu para se sentar.
        Cláudia estava nervosa. Olhava para todo o lado e não havia maneira de Sérgio aparecer. Oh!, mas é claro, devia ser isso mesmo: ele devia estar à espera que o espectáculo começasse, para depois vir ter com ela. Era isso de certeza, só podia.
        O espectáculo começou. Agora é que ele ia aparecer. Só que de Sérgio, nem sombra.
        O intervalo chegou e de Sérgio nada. Mas aonde é que aquele gajo poderia estar? Será que ele estava a gozar com ela, estava? Se sim, ela não se estava a rir.
        A segunda parte do espectáculo. Ó pá, Cláudia já se estava a passar dos carretos. Aquele tipo não aparecia. Assim não valia. Se ele fosse para a merda...
        O espectáculo acabou.
        “Ena mana” Nuno pulava “Foi muita giro, não foi?”
        Cláudia nada disse.
        “Eh, mana” Nuno puxou-lhe pela manga do casaco “Estás a ouvir?”
        “Hã? O quê?... Se foi giro?... Foi, foi muito giro” Cláudia estava furiosa, mas teve que fingir para o irmão não perceber – sim, porque ele podia ser uma criança, mas de parvo não tinha nada.
        Aquele... aquele... estúpido, monte de merda, analfabruto, tinha-a deixado especada! Tinha-lhe dado – como é que se diz? – uma tampa! Ai, que raiva...
        Em casa atirou um “Boa noite” aos pais, e apressou-se a meter-se na cama. Aquele cabrão, ordinário... (só miminhos)...

        Pois é! Esta história de Verão acaba aqui. O que vocês queriam e estavam à espera sei eu, mas olhem, enganei-os. Se querem que a história acabe de outra maneira, têm bom remédio, escrevem-na vocês.