segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Até sempre


Caros amigos,

Venho por este meio suspender, por tempo indeterminado, a minha actividade neste blogue.
A partir desta data, podem acompanhar-me na minha página do Facebook. https://www.facebook.com/autora.fatimadoliveira/, que desde já vos convido a conhecer: se possível, gostem da mesma e comentem-na.

Obrigado




sábado, 11 de agosto de 2018

Nomes, conceitos, significados & definições


Há pessoas simplesmente... más.
E de nada a vale a pena negar.
Por muito que procurem razões ou inventem desculpas para tal, a verdade, nua, dura e crua, é que as há.
E eu, melhor do que ninguém, devia sabê-lo.
Porque eu sou uma delas.

O meu nome não interessa, mas posso-vos dizer que, ao contrário do que possam pensar, a minha infância foi muito feliz, recheada de amor e carinho, sem marcas nem traumas, com a minha família.
Também nunca senti a mínima inclinação para fazer mal a animais. Pelo que tenho lido, ouvido e visto, é por aí que começam as primeiras manifestações dessa tal… característica. Já comigo, não foi assim: nem pouco, mais ou menos. Eu até sempre gostei muito de animais e desde sempre preferi a companhia dos ditos cujos a algumas pessoas.
Outra coisa que não posso dizer é que o, vamos lá, mal escondido em mim sempre cá esteve, latente, bem cá no fundo e que o mesmo foi crescendo, germinando lentamente dentro de mim, qual cerejeira em flor.
Na verdade, aconteceu de repente. Num dia (se belo ou não, não sei: já não me lembro), devia eu ter à volta de uns 17 anos, ia eu muito bem a caminho da escola quando, sem dizer água vai, de repentemente me deu vontade de fazer mal a alguém. Mas mal mesmo, a sério. E não pensem que foi só uma daquelas manias, pancadas que quando batem, batem forte, mas batem só uma vez. Não. Quando aquilo me deu, deu para ficar. Permanentemente.
O pior que já fiz?
Bom, assim de repente, tenho que dizer que foi quando tirei aquela vida. Matei só porque me apeteceu. E se querem que vos diga, gostei. Gostei de sentir aquela força vital, essência de ser e sentir, a esvair-se lentamente, escorrer como grãos de areia entre os meus dedos poderosos e triunfantes. Sabem, o tal mal, maldade, malevolência, maleficência, chamem-lhe o que quiserem.
São muitos os que acham que a minha pessoa está avariada ou mesmo partida. Permitam-me discordar. Ou então há aqueles que inventam nomes e conceitos para nos caracterizar e definir e, ao mesmo tempo, se sentirem melhor com eles próprios: psicopatia, sociopatia, ou ainda outra anomalia qualquer. Mas não, nada disso: eu… sou apenas eu. Assim mesmo. Por inteiro.


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Gato escondido


Chamem-me Aristides, já que é esse o nome por que sou conhecido. Pelo menos, nos círculos onde me movo.
Sou profissional, mas não tenho nada que o prove, nenhum documento.
Ainda pensei em sindicalizar-me, mas não há sindicatos para a minha profissão.
O que eu faço, o trabalho a que me dedico, profissionalmente falando é claro, é aquilo a que eu gosto de chamar uma profissão clandestina: esforçam-se por fazer de conta que não sabem dela, mas todos sabem que existe.
Até há bastante trabalho – mais do que possam imaginar –, mas o mais difícil é, adivinharam, encontrá-lo e assegurá-lo…
Não é como se eu pudesse ir a um Centro de Emprego inscrever-me, ou pôr um anúncio no jornal… Não é assim que funciona.
Quer-se dizer, ser, até é – pelo menos, no que toca a jornais.
Realmente, a coisa funciona com um anúncio de jornal a publicitar os meus serviços.
Só que isso nunca é feito directamente, às claras; é antes por código, às escondidas. Mas quem realmente me quer achar, sabem onde me descobrir. Se forem ver nos anúncios classificados, de certeza que me vão me vão encontrar. Têm é que saber o que e onde procurar.
Se bem que, nos dias de hoje, com a ascensão das redes sociais e o poder da Internet, os anúncios classificados já estão a ficar um tanto ou quanto obsoletos; mas não completamente fora de moda, pois ainda são muitas as pessoas que não têm computador – seja por opção, seja por necessidade; ou mesmo tendo computador, optam por não fazer uso das redes sociais.
Para cobrir todas as bases, por assim dizer, estou em todo lado: faço questão de manter um anúncio classificado nos principais jornais e revistas (o que não me sai nada barato, mas é como já lá diz o provérbio: cada um colhe o que semeia) e também estou presente nas redes sociais.
Mas nunca dou a cara. Quero com isto dizer que não há fotografias minhas. Sim, porque isto de manter o anonimato é de vital importância para a minha linha de negócio. Então, por norma uso fotografias de gatinhos. Ou cachorrinhos. Algo querido, fofo, inocente e inofensivo.
E lá por nunca dar um ar da minha graça, isso não quer dizer que eu não promova os meus serviços. Porque eu faço-o – discretamente, mas faço-o.
Porém, verdade seja dita, a qualidade do meu trabalho fala por si só.
Mas quem realmente me quer encontrar para encomendar os meus serviços, sabe muito bem onde me procurar.
Só têm que o fazer. Eu agradeço.


sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A ti, em ti e para ti

  
(versão revista e actualizada do conto “Verão alentejano”, da minha autoria, concorrente ao Prémio Literário //DO MOSTO À PALAVRA 2017//, uma iniciativa da Chiado Editora e posteriormente incluído no livro “Do mosto à palavra, volume I – Colectânea de Prosa e Poesia sob a temática: Alentejo” - Chiado Editora, Novembro/2017)


E
sta noite voltei lá.
Em sonhos, é certo, mas voltei.
Àquele Verão, o NOSSO Verão.
E fomos felizes, tão felizes… tão, tão absurda, intensa e plenamente felizes…
Conheces aquela expressão da língua inglesa, Indian summer, ou seja, Verão indiano?[1]... Pois bem, nós tivemos antes o nosso Verão alentejano.

Lembras-te?

Tinha 15 anos e estava de férias, as chamadas férias grandes. Estava a passar o Verão na casa da minha tia Natália irmã mais velha da minha mãe, que morava em Santiago de Cacém. Mas os meus companheiros de aventuras foram os meus primos Jonas e Elias, mais velhos do que eu e que já tinham carta de condução e que, como tal, passaram o Verão a levarem-me, a prima caçula, a tudo o que era sítio.

A primeira memória que me assalta é o azul profundo do mar. Eu sei que habitualmente, quando pensamos no Alentejo, o mar não é, propriamente, a primeira coisa que nos vem à lembrança.
Mas a mim, é.
Nomeadamente, o mar das praias das Costas alentejana e Vicentina[2].
Lembro-me principalmente da praia onde costumávamos ir, da “nossa” praia, a Lagoa de Stº André. O que eu mais gostava dessa praia era a sua amplitude. Junto ao mar, o areal era extenso e depois havia a lagoa, também com um grande areal. E ainda havia as dunas. Resultado: por muita gente que estivesse a praia, nunca se sentia a mesma sobrelotada. O que para mim era óptimo, pois eu nunca gostei de muita gente junta: parece que me falta o ar, que não consigo respirar.
E por falar em Lagoa de Stº André, lembras-te de que os meus primos quase que me “obrigaram” (entre aspas, claro está, pois eles obrigaram-me a coisíssima nenhuma) a acampar com eles, na Lagoa de Stº André, durante uma semana? Apesar de Santiago do Cacém ficar bastante perto, os meus primos diziam que só assim eu podia usufruir da experiência completa que a Lagoa de Stº André proporcionava. Convencida de que tudo aquilo não passava de paleio dos meus primos para eles poderem estar com as namoradas à vontade, mas mesmo assim não me importando absolutamente nada com isso, lá acabei por concordar. E acabei por lhes dar razão. O parque de campismo ficava mesmo junto à lagoa e durante uma semana adormeci com o coaxar das rãs e acordei com o chilrear dos pássaros. Quanto à história das namoradas, eu até tinha razão, se bem que só parcialmente: efectivamente a Vera e a Ana (namoradas do Jonas e do Elias, respectivamente) foram lá ter connosco, mas iam e vinham todos os dias – a Vera, de Santiago do Cacém, a Ana, de Vila Nova de Stº André. Iam e vinham de autocarro quase todos os dias, excepto numa ocasião: quando o Jonas e o Elias as foram buscar. Mas nem pensem que os meus primos me deixaram sozinha na praia: não, eu fui com eles, praticamente atrelada, E se passa pela cabeça de alguém que eu fui negligenciada nessa semana, bom, não podiam estar mais enganados: contrariamente às minhas expectativas, os meus primos e as respectivas namoradas sempre me acolheram de braços abertos no grupo deles, fazendo-me sentir alguém importante, igual… fazendo-me sentir bem. Se bem que eu nunca percebi que interesse eu podia ter, uma simples rapariga de 15 anos. Olhando para trás, tenho quase a certeza que o que os atraia era a minha ingenuidade e a minha vontade e disponibilidade de aprender. E eu aprendi. E apreendi.
Também me lembro da praia de Porto Covo, das suas praias entaladas entre as falésias e do seu casario. Quando primeiro visitei essa praia, foi ainda na era pré-Rui Veloso.[3] Ou seja, quando a conheci ainda se resumia à praça central e só mais algumas casas. E as praias ainda nem sequer eram vigiadas.
Ou da praia de São Torpes, logo a seguir a Sines e com as suas águas quentes, à sombra (por assim dizer) da Central Termoeléctrica de Sines.
Ou da praia do Almograve, com a placa evocativa do desastre ambiental que ali ocorreu[4].
Ou da praia de Vila Nova de Milfontes, tão cheia de veraneantes, que eu me lembro de pensar: “Se isto é assim a uma Quarta-feira em Julho, nem quero pensar num Domingo em Agosto.”
Ou da praia da Zambujeira do Mar, ainda muito antes da existência do Festival do Sudoeste[5]. Mas se a memória não me falha, naquele dia em particular, decorria naquela praia mais uma eliminatória do popular concurso “Construções na Areia”, iniciativa do jornal “Diário de Notícias”.
Ou da praia de Odeceixe, na fronteira entre o Alentejo e o Algarve.
Ou da praia da Arrifana, já no Algarve.
Lembro-me ainda de ir ao Cabo Sardão. Na altura, ficava lá perdido no meio de mato e para lá ir só havia estradas de terra batida.

De Odemira, já não me lembro muito bem: de algumas casas brancas, do Rio Mira e pouco mais. Talvez porque, se a memória não me falha, só passámos ao lado, não entrando na povoação.
Mas de Grândola, já me lembro. Lembro-me do monumento a “Grândola Vila Morena”[6], do calor abrasador, de não se ver vivalma e de eu pensar que os alentejanos é que a sabiam toda.
Por falar em calor, lembras-te daquela tarde em Santiago do Cacém, quando fazia um calor tão tórrido, tão sufocante, que não só parecia que o simples acto de respirar nos queimava por dentro, como o ar que nos rodeava nos pesava, fazendo-nos custar dar um só passo que fosse? Sei que tivemos que entrar num qualquer café, por duas razões: para fugir ao calor ardente e torturante, e para beber qualquer coisa que pudesse matar a sede e refrescar. Já não sei muito bem o que bebi (7up… ou Sprite…)¸ mas fosse lá o que fosse, o que eu sei é que nunca uma bebida fresca me soube tão bem.
Ou ainda quando os meus primos fizeram questão de me mostrar as ruínas romanas de Miróbriga[7].

Também me lembro de estar em Sines, junto à igreja[8] e à estátua de Vasco da Gama[9], junto ao castelo, com vista para a praia. Aliás, foi por causa da estátua que eu soube que o dito cujo tinha nascido em Sines.

E daquela vez que fomos passear para o interior, lembras-te? Eu lembro-me das retas a perder de vista, dos chamados quilómetros alentejanos que nunca mais acabavam…
Em Alter-do-Chão, já bem perto da hora de almoço, lembras-te de quando o meu primo Elias se dirigiu a um velhote que parecia ser dali e lhe perguntou se sabia indicar algum restaurante para almoçar?...
Eu lembro-me da resposta do velhote, que pregou um sorriso aos meus lábios e me fez gargalhar para dentro, enquanto que o meu primo Jonas teve que morder os lábios com força para não se desmanchar a rir: “Há este, mas como eles só servem migas e eu já estou farto de migas, é melhor irem àquele”.
Ou ainda quando fomos a Évora. Estávamos a ver o Templo romano de Évora, vulgarmente conhecido como o Templo de Diana[10], quando ouço um chocalhar. Ao ouvir aquele som, pensei logo: “Cabras? Em plena cidade de Évora?” Mas não. Qual não foi a minha surpresa quando vejo que é um homem (provavelmente um turista, a julgar pela indumentária) com um chocalho… ao pescoço!
Ainda em Évora, fiz questão de ir à Capela dos Ossos[11], na Igreja de São Francisco. Já tinha ouvido falar de pessoas que se tinham sentido mal, de tão impressionadas que ficaram. Mas a mim não me fez a mínima mossa. Do que me lembro bem é daquele homem que já estava um tanto ou quanto “alegre” e que quando leu a frase à entrada da capela, “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”, deu em rir histericamente. Resultado: foi prontamente convidado a sair.

Estas memórias assaltaram-me esta noite em sonhos.
Mas quero voltar.
Voltar a passear em ti, mergulhar em ti…
Voltar a ti.



[1] Em Portugal, a correspondência mais próxima será, talvez, o Verão de São Martinho
[2] Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina – litoral sudoeste de Portugal, entre a ribeira da Junqueira, em São Torpes, e a praia do Burgau
[3] Autor e intérprete da canção “Porto Covo” (álbum “Rui Veloso”, 1986)
[4] Em 1989 houve um derrame de petróleo, consequência do acidente com o navio Marão
[5] Festival de música, que costuma ocorrer na 1.ª semana de Agosto
[6] Canção interpretada por Zeca Afonso, que serviu de 2.ª senha [Partida] ao movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos (a 1.ª senha [Preparar] foi a canção “E depois do adeus”, interpretada por Paulo de Carvalho)
[7] Miróbriga (Mirobriga Celticorum) é uma antiga cidade romana, situada perto de Santiago do Cacém.
[8] Igreja Matriz
[9] Navegador e explorador português. Distinguiu-se através da descoberta do caminho marítimo para a India, entre 1497 e 1499 (n. 1469 – m. 1524)
[10] Deusa romana da caça
[11] Edificada no século XVII por iniciativa de três frades franciscanos, cujo objectivo era transmitir a transitoriedade e fragilidade da vida humana

quinta-feira, 2 de junho de 2016

O prazer é todo meu


Escrevo isto para ti.
Acho que se pode chamar a isto uma carta.
Portanto, escrevo-te uma carta, esta carta.
A minha primeira carta.
De amor, bem entendido.
Podia muito bem te ter enviado um e-mail, mas não. Por duas razões: primeira, porque faço questão de te escrever pessoalmente, pelo meu próprio punho – assim sempre tens um pedaço meu, de mim; segunda - e esta é uma razão bem mais prosaica -, porque não tenho o teu e-mail.
Sabes, gostava de ser uma mosca (ou mosquito... ou coisa que o valha...), só para ver a tua reacção ao leres estas folhas soltas rabiscadas à pressa: estou mesmo a ver, depois da surpresa inicial, quase que aposto que dirás algo como “Mas que raio de brincadeira é esta?!” e “Esta gaja está completamente passadinha dos carretos”.
A tua mais que provável reacção, deixa-me que te diga, até tem alguma razão de ser.
É que eu não te conheço.
Ou melhor, nunca te fui apresentada. Ou me apresentei.
Porque conhecer, eu até te conheço. Provavelmente, e perdoa a imodéstia, melhor que ninguém, Se calhar, conheço-te melhor que tu.
Não acreditas?
Para começar, vejo-te todos os dias.
Mas não, não te vou dizer onde: isso tornaria tudo demasiado fácil.
Mas vejo, sim. Todos os dias.
À conta disso, até já sei o teu nome: Vasco.
E quando digo que te conheço, estou a falar a sério. Mas mais do que te conhecer, adivinho-te, sinto-te.
Já chamei a esta carta, uma carta de amor.
Mas não.
Enganei-me e permite-me aqui emendar o meu erro: esta não é uma carta de amor, é antes uma carta... de qualquer coisa ainda sem nome. Qualquer coisa profunda, que morde e arranha os cantos mais escuros e escondidos da alma e do ser.
Mas seja como for.
Primeiro que tudo e antes de mais nada, quero-te dizer olá.
Eu sou a Elisa.
Muito prazer.




domingo, 15 de maio de 2016

Vertigem


Vertigem. Respirar fundo. E esperar.
Esperar pelo apito, pelo maldito apito. Para tudo começar. Outra vez.
Os pontapés, a dor que de tão insuportável se tornava praticamente inexistente, perfeitamente olvidável e completamente ultrapassável. E se das primeiras vezes que aquilo lhe tinha acontecido, ainda se tenha perguntado porquê, agora já não fazia isso: já sabia melhor.
Todas as semanas ela experimentava a mesma... mesma... selvajaria, verdadeira brutalidade, autêntica tortura e desmedida agonia.
E no entanto, ela sentia-se algo parecido com feliz, completa e realizada: é que assim, não obstante as mazelas, havia um propósito, um intuito e uma finalidade.
Ela era precisa.
E também amada. Sim, ela sentia-se amada, pois ela bem sentia a imensa satisfação das pessoas e ouvia os gritos de deleite e prazer, suprema alegria.
É claro que também ouvia alguns impropérios e injúrias, mas já lhe tinham explicado que nada daquilo lhe era dirigido, mas sim aos outros intervenientes.
Quem lhe tinha explicado foi uma velha veterana daquelas andanças, ainda antes da primeira vez dela, quando se apercebeu de que ela era caloira, a estrear.
Mas mesmo com aquelas explicações todas, nada a podia preparar para o primeiro embate, o primeiro pontapé. E como ela era redonda, a dor, aquela dor agonizante, parecia que rodava dentro dela, atingindo-a em toda a sua plenitude.
Agora, já sabia o objectivo final daquilo, aquele jogo a que chamavam futebol, verdadeiro rastilho de paixões: metê-la a ela, bola, com os pés ou com a cabeça, dentro daquela coisa rectangular e rodeada de redes, com um homem a guardá-la, por vezes a fazer figuras muito tristes.
O que nem sempre acontecia.
Não obstante as inúmeras e frenéticas tentativas.
Na verdade, ela quase que sentia pena dos jogadores; mesmo apesar dos pontapés, a empatia era inevitável. Era como se ela, a bola, e eles, os jogadores, fossem um só. Pelo menos, durante o tempo do jogo.
Que estava mesmo a começar.
O árbitro ia apitar e novamente ela sentiu uma vertigem.









terça-feira, 3 de maio de 2016

Uma coisa cor de burro quando foge

O provérbio diz que “O sol, quando nasce, é para todos”, mas George Orwell[1] escreveu que “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”[2].


Alex tentou disfarçar as lágrimas que teimavam em querer cair dos seus olhos com uma força incontrolável, ao mesmo tempo que lutava, de uma forma quase inglória, contra uma avassaladora, arrebatadora e arrasadora vontade de chorar.
“Não posso chorar” era tudo o que passava pela mente de Alex “Não posso chorar, ou vão gozar comigo”.

Tinha sido sempre assim: toda a sua vida, desde que se lembrava de ser gente, aquele sentimento de não só ser uma peça de puzzle contínua e teimosamente fora do sítio, como também de desesperadamente querer encaixar, nem que fosse no sítio errado.

O seu nome, Alex, era, à falta de melhor palavra, apropriado.
Alex, um nome unissexo. Ou sem sexo.
Tal como Alex. Exactamente como Alex. Literalmente.

Alex não tinha sexo. Nem órgãos genitais, nem órgãos reprodutores.
Era completa e totalmente assexuado. Ou assexuada.
Sem género.
Sem gender[3]. Sem génos[4].
A-gender. A-génos.

Simplesmente tinha nascido assim.
Porquê?
Ninguém sabia.

Alex foi uma criança abandonada à nascença.
Mas Alex não culpava os pais.
Na verdade, até os compreendia.
Quem iria querer ser pais de uma criança sem género, sem sexo que a definisse?
Uma criança assexuada – uma aberração da natureza.

Essa característica – ou falta dela, dependendo do ponto de vista – tinha regido, ou melhor dizendo, assombrado toda a sua vida.
Por causa dela, Alex não tinha podido frequentar a escola.
Tinha tido aulas em casa. Ou orfanato. Ou lar de acolhimento.
Também nunca família alguma quis adoptar Alex.
Quer-se dizer, querer, até quiseram. Houve famílias que até mostram algum interesse. Mas mal tomavam conhecimento da singularidade muito peculiar de Alex, logo recuavam nesse mesmo interesse.

Enquanto crescia, como forma de combater a imensa solidão e dor que assolava e corroía Alex, começou a imaginar, mais do que isso, a sonhar que a sua… excentricidade significava uma evolução, o aparecimento de uma nova espécie, o passo seguinte da humanidade.
E Alex era o primeiro caso, pelo menos que se soubesse. Um caso pioneiro.

Mas mesmo isso não impedia Alex de se sentir a afogar, cada vez mais, nas areias movediças que representavam a sua existência.

Toda a sua vida se resumia a um grande ponto de interrogação, enorme confusão, infinita trapalhada.
O seu dia-a-dia era inundado das mais pequenas coisas que, para qualquer outra pessoa, eram de tal maneira irrelevantes, que se tornavam praticamente insignificantes. Por exemplo, sempre que tinha que preencher um qualquer formulário, quando chegava à famigerada questão sobre o sexo, paralisava: e agora, feminino ou masculino, já que estas eram as únicas hipóteses?... Também sempre que Alex tinha que ir a uma casa de banho pública, coisa que evitava ao máximo, parecia que o tempo ficava suspenso: homens ou mulheres?
Chegou ao ponto de Alex invejar, mas invejar a sério, todos os homens e todas as mulheres: esses sabiam quem eram, pelo menos a nível de género. Neste sentimento de inveja, Alex incluía também os transsexuais, pois esses também sabiam quem eram: podiam ter nascido no corpo errado, mas tinham consciência disso.
Mas Alex não tinha sexo. Era superior a isso. Ou inferior. Provavelmente inferior.
E então, a inveja. Mas não era uma inveja malévola. Não, era antes uma inveja… passiva.
Mas havia um pequeno grupo de pessoas de quem Alex não sentia inveja. Não, por esses sentia antes outra coisa: empatia. Os hermafroditas. Esses também deviam sentir o mesmo que assolava Alex. Só que, ao contrário de Alex que não tinha género, os hermafroditas tinham os dois, masculino e feminino.

Alex não tinha amigos. Nunca tinha tido.
Na infância, quando mais tinha necessitado e procurado, sempre o tinham perentória e ferozmente afastado, quiçá devido à sua… diferença.
Essa crueldade e indiferença ficaram gravadas a ferro e fogo na sua alma, de tal maneira que nunca mais Alex se atreveu a procurar qualquer outra forma ou tipo de contacto humano.
Desenvolveu uma espécie de carapaça, uma armadura, para defesa dos golpes que ainda tinha que enfrentar.

Uma das coisas que mais assustava Alex eram os pesadelos que teimavam em fazer-lhe visitas, sempre e cada vez mais indesejadas.
Quando Alex estava mais à mercê de quem ou o quer que fosse e sem quaisquer hipóteses de defesa, os pesadelos apareciam, saltando, sem apelo nem agravo, de sabia-se lá de onde.
Sempre à noite, quando Alex conseguia finalmente adormecer. Parecia de propósito: sabiam sempre quando Alex estava mais vulnerável e aproveitavam-se dessa mesma vulnerabilidade, ao mesmo tempo que se divertiam.
E Alex voltava a ver e a sentir o que tanto se esforçava para esquecer: os risos, os olhares de troça, os cochichos…

Alex também sonhava, mas não se atrevia a partilhar os seus sonhos.
Sonhava com um mundo mais tolerante, onde a diferença não fosse sinónimo de ostracismo.
Um mundo onde todos pudessem caminhar lado a lado.
Um mundo onde imperasse o respeito pela individualidade de cada um.

Anos mais tarde, soube que Alex começou apenas por ser um diminutivo carinhoso que os seus pais lhe chamavam, antes do nascimento.
Como os pais não pretendiam saber se ia ser menino ou menina, chamavam-lhe Alex, que tanto dava para um lado, como para o outro.
Alex: Alexandre ou Alexandra.
Mas eis que chega a hora do parto chega e Alex nasce, uma criança recém-nascida pronta e cheia de vontade de gritar “olá, cheguei” ao mundo.
E agora, Alexandre ou Alexandra?
Bem, na verdade, nem uma coisa, nem outra.
Alex, apenas Alex.
Nem menino, nem menina.
Apenas uma… coisa.
Uma coisa cor de burro quando foge.



[1] De seu nome verdadeiro Eric Arthur Blair, mas mais conhecido pelo pseudónimo George Orwell, foi um escritor e jornalista inglês (25/06/1903 – 21/01/1950).
[2] Livro “O triunfo dos porcos” (“Animal farm”), 1945.
[3] Palavra “género” em latim.
[4] Palavra “género” em grego.